Apostas esportivas: indo além da ilusão do ganho fácil e do preconceito com o jogo
30 julho 2023 às 00h00
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As apostas são a bola da vez – para citar uma expressão de um jogo que muitas vezes envolve apostas, a sinuca. Na semana passada, o Ministério da Fazenda deu o pontapé inicial para a regulamentação das apostas esportivas no País. O titular da pasta, Fernando Haddad, enviou uma medida provisória (MP) para o Congresso Nacional, com vistas a dar início ao processo.
Desde 2018, a partir de uma decisão do então presidente Michel Temer (MDB), as casas de apostas, chamadas popularmente de “bets”, puderam atuar no Brasil e tomaram conta do pedaço: são grandes patrocinadoras de clubes de futebol e federações, investem pesado em propagandas na TV e na internet de emissoras de TV e acabaram por ser envolvidas em escândalos no futebol com fabricação de resultados diversos, a partir de uma investigação que surgiu a partir de uma denúncia apurada pelo Ministério Público de Goiás (MPGO).
As mudanças na atividade só devem entrar em vigor no próximo ano e permitirão que o governo cobre tributos tanto de empresas como de apostadores. A previsão é de que isso também permita maior fiscalização sobre o setor para, entre outras coisas, coibir as máfias das apostas que manipulem resultados e dar suporte ao combate ao vício, um problema que é uma questão social e inevitavelmente afeta parte de quem se envolve com a atividade.
Quem vê o roteiro das propagandas na TV entende que a atividade é divertida e pode trazer dinheiro fácil. Não é o que ocorre, no entanto: pesquisas apontam que apenas três em cada cem apostadores vão se tornar lucrativos em longo prazo. Em outras palavras, isso significa que uma coisa é instalar um aplicativo de casa de apostas no celular, abrir uma conta e, numa tarde de domingo, ganhar uma grana com palpites certeiros; algo bem diferente é fazer da atividade um investimento de renda variável, tal qual um operador do mercado financeiro.
Há quem se torne de fato profissional da área e se preocupe tanto com a regulamentação quanto com a reputação da atividade. Fábio “Nettuno” Bampi e Ricardo Santos são dois desses nomes que têm grande alcance nas redes sociais e canais em plataformas.
Ricardo Santos, que tem quase 200 mil inscritos em seu canal no YouTube, o Full Trader, chegou a levar as demandas dos apostadores a Brasília, em março, durante a discussão da regulamentação das apostas esportivas. Ele faz questão de diferenciar quem trabalha com o chamado trading esportivo de quem aposta em jogos de probabilidades definidas, como roleta, dados e máquinas caça-níqueis. “É possível estabelecer um padrão dentro do futebol e isso fica claro quando você trabalha com dados. É por isso que as casas de apostas sempre têm lucro: elas estabelecem as cotações de cada evento de acordo com essa gigantesca base de dados de que dispõem”, explica, em um dos vídeos. Como têm acesso a mais informações sobre campeonatos, times e atletas do que qualquer pessoa, sempre têm vantagem”, afirma.
Então é verdade que a banca sempre vence, como reza o ditado? “Sempre” é muita coisa. Mas aqui é preciso diferenciar dois tipos de plataformas para a atividade: as casas de apostas (como Pinnacle, Bet 365, Sporting Bet, Betsson etc.) e as exchanges (como a Betfair – a gigante do tipo –, LayBack e Fullbet, entre outras). Nas casas, o apostador joga contra a cotação definida por ela; nas exchanges, os apostadores jogam entre si e a cotação varia de acordo com o dinheiro que entra no mercado por meio deles, “puxando-a” para cima ou para baixo, à semelhança do que ocorre em uma bolsa de valores. Se nas casas de apostas, o apostador lucra com uma cotação não ajustada que encontra – e isso demanda muito conhecimento das probabilidades –, nas exchanges ele vai ganhar quando estiver do lado certo do “peso do dinheiro”, o que se pode fazer acompanhando o evento (no caso, a partida) enquanto ocorre. Em ambos os casos, isso leva tempo, o que inviabiliza que um apostador consiga ser lucrativo no longo prazo sem conhecimento e experiência. A propósito: nas apostas esportivas, quem faz entradas antes do evento, apenas considerando o valor das cotações que encontra, é chamado de punter; já a quem acompanha o evento (uma partida de futebol, por exemplo), aguardando momentos para fazer suas entradas e saídas do mercado, chama-se trader.
O gaúcho Fábio Nettuno é um trader – assim como Ricardo – e também produz conteúdo nas redes sociais e se mostra sempre preocupado em educar o apostador a entender a necessidade de se disciplinar. Assim como Ricardo Santos, ele também já tem mais de uma década de experiência no ramo e vem acompanhando de perto a evolução do processo de estudo da regulamentação e da tributação das apostas.
Um cuidado especial que Nettuno tem com seus seguidores é, em meio a exemplos de sucessos, apresentar também casos de quem não se deu bem com as apostas. “Se você está colocando seu patrimônio nas apostas, pegando dinheiro emprestado, isso não é para você, saia disso”, costuma avisar. Uma das formas de ruína de apostadores é o que ele elaborou com o nome de “teorema da escada”: o apostador, sem uma devida gestão de banca – ou seja, o controle adequado da quantidade de dinheiro que coloca por entrada no mercado –, faz uma série de apostas arriscadas, como o chamado “all-in” (apostar toda a banca), com o que vai “sobrevivendo”. Esses movimentos podem salvar momentaneamente uma sequência de “reds” (apostas perdidas), mas, sem método nem gestão, a pessoa inevitavelmente em algum momento vai perder tudo ou quase tudo – o que não é uma questão de se, mas de quando. “No teorema da escada, o apostador até consegue subir alguns degraus, se sente aliviado por isso, mas, quando cai, o tombo é grande”, diz Nettuno.
Outro trader bem-sucedido, que se dedica a servir com vídeos e relatórios outros apostadores é Theo Borges, que tem um canal com mais de 250 mil inscritos no YouTube. Diariamente, para sua comunidade, ele produz uma lista com dados de dezenas de partidas, além de produzir um vídeo de estudo pré-jogos e outro, de análise pós-jogos. Para quem se interessa, são materiais bastante valiosos. “Vai com calma, que amanhã tem outro dia”, é o lema que ele dita ao fim de cada vídeo a seus seguidores.
Aposta envolve riscos e de fato não é algo para todo mundo, mas o que não dá para negar é que existe uma série de preconceitos contra apostadores. No Brasil, especialmente, devido à proibição oficial de jogos durante muitas décadas e a questão religiosa, isso ainda é mais notado. E existe sempre alguém para contar uma história de quem perdeu todo o patrimônio em apostas.
Não dá simplesmente para colocar as apostas esportivas no mesmo patamar dos jogos de azar, nem mesmo na regulamentação, porque são atividades que lidam com o acaso de formas diferentes: afinal, um jogo de futebol tem muito mais nuances de que uma roleta de cassino.
“Aprendi muito depois de perder US$ 3 mil em um só jogo”
O servidor público João Lúcio (nome fictício) começou no mundo das apostas esportivas em 2017, quando seu irmão lhe apresentou um aplicativo. Desde então, não parou mais de apostar, por acreditar que isso poderia lhe ser uma fonte de renda a mais. Só que aprendeu, durante a trajetória no chamado trading esportivo, que precisa ter paciência e disciplina para que isso possa de fato acontecer de forma positiva em sua vida. Por questão de discrição pessoal, ele preferiu não revelar seu nome, mas concedeu um depoimento sobre sua experiência com as apostas ao Jornal Opção.
Estou na batalha das apostas esportivas desde março de 2017, quando meu irmão me apresentou um site, no caso o da Betfair. Eu nunca tinha me envolvido com nenhum tipo de jogo, não gosto de loteria, muito menos de cassino ou roleta. Bingo e rifa, eu só compro se for beneficente (risos). Outra coisa: eu não sabia que podia ganhar dinheiro vendo jogo de futebol, que é algo que gosto muito desde criança. Então, esse mundo era realmente todo novo para mim – naquela época, ainda não havia propaganda de casas de apostas, “Bet isso”, “Bet aquilo”.
Outra coisa: no meu caso, precisei comprar dólares para apostar, o que faz a gente perder, pelo menos no começo, a noção do que está de verdade colocando em jogo. No início, eu não tinha a menor noção de métodos ou estratégias. Apenas achava que podia ganhar dinheiro porque entendia de futebol.
Comecei com 40 dólares como banca [montante reservado para apostar] e em dois dias logo cheguei a 100. De repente, em menos de um, perdi tudo. Então coloquei mais 100 dólares e daí fui a 400 em uma semana. Como eu jogava? De acordo com as ‘opiniões’ que eu tirava da minha própria cabeça, como a ideia de apostar em jogos em que tinha um grande favorito, como um Real Madrid ou um Barcelona, já estava ganhando ainda no primeiro tempo de um time pequeno, porque na minha cabeça não tinha mais como perder. Geralmente você ganha mais do que perde em apostas assim, mas quando ganha é pouco, justamente porque a chance é grande de o favorito vencer.
Jogando assim na maioria das vezes, tropeçando aqui ou ali, cheguei a uma banca de 3 mil dólares. Só que, depois de perder uma pequena aposta de 100 dólares – para o tamanho da banca que eu passava a ter –, tinha um jogo do Atlético de Madrid pelo Campeonato Espanhol contra o Leganés, um time pequeno. Eu comecei a assistir exatamente quando o Atlético, grande favorito, fez o gol. Então faltavam ainda 20 minutos para terminar a partida. A cotação do time passou a ser algo como 1.10, o que significa que se eu apostasse 100 dólares, ganharia 10. E resolvi apostar os 3 mil dólares que eu tinha, porque a defesa do Atlético de Madrid era muito boa e, com o time ganhando, não correria perigo. Mas então teve uma falta longe do gol para o Leganés. O jogador jogou na área e o atacante cabeceou e fez o gol. O que era para ser um lucro de 300 dólares, naquele momento, virou um prejuízo de quase 2 mil dólares. Faltavam menos de 10 minutos para terminar e eu tinha duas opções: ou encerrava a aposta com esse prejuízo ou esperava por um gol e, caso não saísse, perdia todo o resto. Fiz a opção pela segunda alternativa – que já tinha dado certo outras vezes –, mas o gol não saiu. Perdi todo o trabalho de meses por ter feito um “all in” [apostar todo o dinheiro da banca].
Isso não me comprometia quase nada financeiramente, porque de fato eu não tinha vendido nada do meu patrimônio para fazer a banca: eu tinha perdido, do meu próprio dinheiro, sei lá, uns 250 ou 300 dólares de depósitos. Mas aqueles 3 mil dólares [cerca de R$ 15 mil na cotação da época] era algo que eu tinha construído durante meses e meses e me pesava muito ter feito uma coisa errada.
Então, a partir dali, descobri que não adiantava eu ter um palpite ou saber sobre futebol. Era necessário entender os mecanismos, estudar o jogo, as estatísticas, o valor de cada probabilidade nas apostas e, importante, aprender com os mais experientes. Mais do que tudo: ter o que a gente chama de “gestão de banca”, ou seja, não apostar sua vida inteira em um jogo só, como se fosse o último.
Então, fiz cursos online de trading esportivo, vi muito vídeo pelo YouTube, aprendi muito sobre cada mercado de apostas e fui me especializando. Não é um trabalho fácil e, depois daqueles 3 mil dólares, ainda perdi muito, muito dinheiro, nada entretanto que comprometesse minha vida financeira. Prefiro ver essa perda como o pagamento pelo aprendizado. Hoje posso dizer que, depois de quase seis anos, estou começando a ter lucros, mas entendi que é algo em longo prazo e que são necessárias três coisas: adquirir muita informação e conhecimento; ter paciência sempre; e, principalmente, ganhar controle emocional.
Posso dizer que nessa caminhada de mais de seis anos eu cheguei perto de me viciar, tive grandes aborrecimentos e que não é algo nada fácil. Ninguém nisso vai ficar rico de um dia para o outro, vai ser preciso batalhar bastante e investir algo que tem mais valor que o próprio dinheiro: seu tempo livre. Hoje, apesar de todas as dificuldades, me sinto em uma espécie de trabalho extra, que me toma horas e horas, mas que quero que possa servir para me gerar uma renda extra para eu me sustentar.