Após um ano, 361 goianos usam terapia que impede a infecção por HIV
22 setembro 2019 às 00h00
COMPARTILHAR
Profilaxia Pré-Exposição, que barra o vírus da aids, está disponível pelo SUS em Goiás desde o ano passado e meta é dobrar o número de pacientes
Rodrigo Hirose
Quando foi identificada, no início da década de 1980, a aids (sigla em inglês para a Síndrome da Imunodeficiência Humana) assustou o mundo. Pessoas morriam rapidamente, acometidas por doenças como o sarcoma de kaposi, um tipo de câncer de pele, e pneumonia. Em 1983 a equipe do francês Luc Montagnier isolou o agente da infecção, descoberta mais tarde dividida com o norte-americano Robert Gallo, que desenvolveu o teste que detectaria o HIV, um retrovírus de comportamento singular e desafiador.
Desde então, a ciência trava uma maratona em busca de uma vacina eficiente para evitar a infecção. Vários testes foram feitos, mas nenhum até agora mostrou-se eficiente em larga escala. Nessas mais de três décadas e meia, o tratamento tem sido cada vez mais aperfeiçoado, mas somente nos últimos anos a prevenção começa a dar saltos semelhantes, com a introdução de novos métodos que se somam ao uso de preservativo.
Uma das armas mais recentes contra a epidemia é a chamada Profilaxia Pré-Exposição (PrEP). Recomendado desde 2015 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para pessoas com significativo risco de infecção, o medicamento (que combina compostos utilizados no controle do HIV) só começou a ser distribuído no Brasil em 2017. Em Goiás, a terapia chegou há pouco mais de um ano na rede pública de saúde.
Estudo
Atualmente, segundo a Secretaria Estadual de Saúde, existem 361 pacientes da PrEP no Estado. Eles estão divididos nas três unidades públicas que atualmente dispensam o medicamento: 222 no Hospital de Doenças Tropicais (HDT), em Goiânia, 90 em Anápolis e 49 em Aparecida de Goiânia. Em todo o Brasil, são pouco mais de 11 mil pessoas cadastradas, conforme o Ministério da Saúde. No mundo inteiro, são aproximadamente 50 mil.
O medicamente é tomado diariamente, em uma só pílula, composta pela combinação entre tenofovir e a entricitabina – já usados no tratamento do HIV. “A eficácia é de mais de 95%”, diz a subcoordenadora de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e Aids da SES-GO, Daniele Prado. Um estudo de 2018, coordenado pela Universidade de São Paulo (USP) e financiado pelo Ministério da Saúde, CNPQ e Unesco, acompanhou 526 voluntários. Após o período de acompanhamento, não houve contágio entre os participantes.
“Até hoje, no mundo todo, só houve o relato de um paciente em PrEP que contraiu o vírus, porque teve contato com uma cepa que tinha mutação que a tornou resistente ao medicamento. Um caso, no mundo inteiro, é pouco em relação ao benefício”, diz Daniele Prado.
É essa segurança que atraiu o autônomo Josano Bispo de Souza, de 39 anos, que aderiu à PrEP em maio de 2018. “Essa estratégia de prevenção foi muito positiva na minha vida, pois solucionou os maiores problemas que eu tinha naquele momento: a dificuldade em usar preservativos e o medo da infecção pelo HIV. Hoje me sinto mais seguro”, diz.
Existem critérios para a utilização da profilaxia pré-exposição. Segundo as diretrizes do Ministério da Saúde, as populações-chave são os gays e demais homens que fazem sexo com homens, transexuais e profissionais do sexo. Casais heterossexuais em que um dos parceiros tenha o vírus e o outro não podem utilizar a PrEP em algumas condições, como nos casos em que aja o desejo de engravidar por vias naturais.
Em Goiás, atualmente, há 9.046 casos registrados de infecção pelo HIV. A média tem se mantido estável, desde a implantação do teste rápido, em 1.550 novos casos por ano. Diante desses números, Daniele Prado acredita que a adesão à PrEP tem sido positiva. “Estamos fornecendo há apenas um ano. Se, em dois anos, conseguirmos dobrar o número de pacientes, eles já representarão metade das infecções anuais. E serão 700 novos potenciais casos a menos”, afirma.
Alguns fatores contribuem para que a procura não seja maior. A desinformação é a principal. Algumas pessoas temem os efeitos colaterais. Os mais comuns são náusea, cólicas, perda de peso e diarreia, que costumam ser temporários. “Não tive qualquer reação. Essa questão varia de organismo a organismo. Então não é uma garantia que a medicação trará efeitos colaterais”, conta Antônio (nome fictício), outro paciente em PrEP ouvido pelo Jornal Opção.
Heterossexuais
De acordo com a subcoordenadora de ISTs/Aids, poucos casais heterossexuais procuraram, até agora, a PrEP. Segundo ela, entre outros fatores, isso decorre do fato de que, normalmente, o portador do HIV em uma relação do tipo está em tratamento e, assim, indetectável – que é quando a quantidade de vírus (carga viral) no sangue é tão pequena que não pode ser rastreada nos testes comuns. “E quem é indetectável não transmite o vírus”, diz Daniele Prado.
Assim, a maioria das pessoas que estão em profilaxia pré-exposição é de gays, outros homens que fazem sexo com homens e transexuais. Esse grupo, inclusive, é foco de campanhas nos serviços especializados do processo transexualizador (Laboratórios TX) do Hospital das Clínicas e do Hospital Geral de Goiânia Alberto Rassi (HGG). “A recepção tem sido muito positiva”, avalia Daniele Prado.
Outro grupo especialmente sensível é o composto por profissionais do sexo. De acordo com Daniele Prado, como o acesso a eles é delicado, a SES tem conseguido apoio por meio de organizações não governamentais. “Realizamos rodas de conversa, ampliando a população que recebe informações sobre a PrEP. Deixamos as portas abertas”, relata.
Dessa forma, essas populações acabam tendo “efeitos colaterais” benéficos para a saúde em geral. Conforme lembra a subcoordenadora de IST/Aids, essas pessoas não costumam ter acesso ao serviço de saúde, por estigma ou horários de trabalho, geralmente noturno. Quando estão em acompanhamento de PrEP, elas passam por check-ups trimestrais.
Capacitação
O número de pessoas que se beneficiam da prevenção por meio de medicamentos deve aumentar com a interiorização da distribuição. Em outubro, equipes de cidades que são referências regionais, como Itumbiara, Catalão, Caldas Novas, Rio Verde, Jataí, Iporá e Cidade Ocidental, serão capacitadas para atender quem pretende aderir à PrEP. A partir de setembros, os SAE/CTA (Centro de Testagem e Acompanhamento) começam a entregar os medicamentos.
“Os profissionais serão capacitados para receber, orientar, ouvir essas pessoas e pedir os exames necessários”, explica Daniele Prado. Depois desse primeiro contato, o usuário recebe medicamento suficiente para 30 dias. Após esse período, as retiradas passam a ser a cada 90 dias, quando são realizados os exames de acompanhamento.
Ao contrário do que se possa imaginar, segundo Daniela Prado, não há constatação de que a PrEP estimule as pessoas a abandonarem o preservativo. Segundo ela, o mais importante é ter conhecimento de que atualmente existe um arsenal importante para a prevenção de novas contaminações: o teste rápido, oferecido nas unidades de saúde, o preservativo, o tratamento, a PrEP e a profilaxia pós-exposição.
“Em países, que já utilizam a PrEP há algum tempo, há registro de diminuição dos novos números de infecção. Espero que isso se repita aqui. Quando temos 360 pessoas se prevenindo [com a PrEP], temos 360 novos casos a menos”.
Pacientes contam como é a experiência de quem usa a PrEP
Josano Bispo de Souza tem 39 anos. Foi um dos dez primeiros pacientes da Profilaxia Pré-Exposição em Goiás. Mesmo morando em Goiânia, ele busca o medicamento em Anápolis, que foi o município pioneiro do programa no Estado. A decisão de usar a estratégia de prevenção foi tomada após se informar por meio de reportagens em veículos de comunicação, para garantir mais segurança nas relações sexuais.
“Fiquei entusiasmado com os dados apresentados na pesquisa que embasava a reportagem que li. Na ocasião, mantinha relações com uma pessoa positiva e via no tratamento uma segurança a mais na prevenção”, conta. Além disso, o autônomo diz que o preservativo dificultava sua vida sexual. “Às vezes não conseguia manter as ereções”, afirma.
Em maio do ano passado, ele procurou o Illion Fleury Jr, em Anápolis. A triagem, que consiste na aplicação de questionários, exames e consultas, levou aproximadamente uma semana. Depois desse processo, retirou os primeiros medicamentos. Atualmente, os busca a cada 60 dias. “Depois que entra no sistema a entrega é regular, sem maiores dificuldades”, conta.
Josano não tem um relacionamento fixo, mas diz que revela aos parceiros que usa a PrEP. “Geralmente falo com as pessoas, porque isso passa uma segurança a mais”, explica. Ele toma um comprimido todas as noites, antes de dormir, e diz que passou a ter relações com mais naturalidade e sem medo.
Porém, admite que abandonou outros métodos de prevenção, como o preservativo. “Procuro manter um número limitado de parceiros, porque a PrEP só previne o HIV, mas não garante proteção contra as demais ISTs [Infecções Sexualmente Transmissíveis]”, justifica.
Josano acredita que mais pessoas poderiam ter acesso à medicação, não fosse uma falha de divulgação da estratégia de prevenção. “Penso que o governo teme uma adesão em massa e o abandono da camisinha. O tratamento foi limitado apenas aos grupos vulneráveis e mesmo assim, com muitas restrições”, afirma.
Nem todos
De fato, nem todas as pessoas que integram os grupos elegíveis (gays, outros homens que fazem sexo com homens e transexuais) efetivamente terão acesso à terapia. “Não é o simples pertencimento a esses grupos que fará que a pessoa seja candidata à PrEP. Depende do comportamento sexual, como a multiplicidade de parceiro ou o não uso de preservativo”, explica Daniele Prado, subcoordenadora de IST/Aids da Secretaria Estadual de Saúde.
Antonio (nome fictício) vive, há três anos, o segundo relacionamento com um soropositivo. Aos 34 anos, ele diz que não abre mão do preservativo, mesmo o parceiro sendo indetectável – portanto, não transmissor do HIV. “Decidi usar especialmente como forma de ajudar a impulsionar o programa e ter conhecimento na prática para poder orientar casos semelhantes”, afirma.
O parceiro de Antonio descobriu que era soropositivo quando buscou o médico por suspeita de dengue e usa os antirretrovirais regularmente, pratica esportes e nunca teve qualquer doença oportunista. Ainda assim, Antonio acredita que a estratégia de prevenção combinada é o melhor caminho. “Busco estar em conformidade com a meta 90 x 90 x 90”, diz, em relação ao objetivo da Unaids de que 90% dos portadores do HIV conheçam sua sorologia, 90% estejam em tratamento e 90% consigam carga viral indetectável.
Assim como Joseano, Antonio considera que mais pessoas poderiam se beneficiar. “O número é muito pequeno. Falta interesse público em divulgar informações, porque, de certa forma, a informação trás obrigações e as obrigações trazem gastos”, critica.
Para ele, a PrEP tem um impacto mais amplo na vida dos pacientes. “Ela é reforçada com a presença do médico infectologista, que se torna o agende de saúde. E eles dão todas as orientações nas consultas. Eu penso nela como uma forma do casal ter uma vida sexual mais saudável.”