As obras do Bus Rapid Transit (BRT) de Goiânia completam nove anos em 2024, desde seu início em 2015. Se contado desde o seu lançamento, o período já ultrapassa uma década, quando a então presidente Dilma Rousseff (PT) esteve na Capital para anunciar a novidade, com o então prefeito Paulo Garcia (PT).

De lá pra cá, no entanto, o projeto tem enfrentado uma série de desafios e atrasos que têm gerado frustração entre os cidadãos. Prolongamento no prazo de entrega das obras, novas licitações, paralisação pelo (Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional) Iphan, pandemia de Covid-19, abandono por parte de empresa, etc.

Segundo a justificativa, o BRT tem o objetivo de modernizar o sistema de transporte público da cidade e oferecer uma alternativa mais eficiente e sustentável. Além disso, a ideia é melhorar a mobilidade urbana e reduzir o tempo de deslocamento, com corredores exclusivos para ônibus. Nesse sentido, o Jornal Opção procurou entender o motivo, ou ainda quais as razões levaram para o atraso na obras.

Apesar de todo percalço no processo, a operação do BRT deve iniciar ainda em 2024. De acordo com o secretário Denes Pereira da Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana, a obra está “praticamente concluída” e deverá ser entregue à Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo (CMTC) ainda neste semestre.

“Todas as 31 plataformas e também todos os terminais já foram entregues para a RedeMob, que, assim que tiver pronta a obra, vai fazer todas as adequações para a operação. O que falta são detalhes e checklists, porque a Estação do Balneário, por exemplo, por ter terminado há 6 meses, 8 meses ou 1 ano, pode ter tido alguma varia. Então, a gente solicita de novo a empresa, sem custo, que refaz uma acessibilidade, uma rampa de acesso, uma pintura. Falta checklist da obra”, explicou.

Cabeça de burro

A reportagem ouviu a professora Maria Ester de Souza, que esteve a frente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU-GO) há anos e saiu neste ano de 2024. Na opinião dela, um dos principais motivos da obra ter se tornado uma “cabeça de burro enterrada” foi a falta de um projeto.

“Uma obra, que cobre praticamente a cidade inteira, com quilômetros de obra, quando começa sem projeto não tem como dar certo. Na minha leitura, ela foi conduzida sem um projeto inicial sólido, completo e um pouco mais detalhado”, criticou.

Maria Ester argumenta que o modelo de contratação de obra pública brasileira permite esse início sem um projeto robusto, o que impossibilita o sucesso e o correto seguimento da mesma.

“Não tem como você conduzir uma coisa que não tem planejamento. Você não sabe o que tem ali na frente, você não sabe quais são os problemas que vão ser enfrentados. Se tivesse gastado cinco anos fazendo um projeto, tinha executado em menos tempo, um ano com a obra. Agora são dez anos jogados fora”, alegou.

Maria Ester de Souza , arquiteta e professora da PUC-GO | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

O Jornal Opção ainda procurou o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Goiás (Crea-GO) sobre as obras do BRT. Assim como Maria Ester, o engenheiro presidente do órgão, Lamartine Moreira, afirmou que, para impactar da menor forma possível a população e ser bem-sucedida, “deveria ter sido realizado um planejamento amplo e organizado.”

Já o secretário Denes Pereira argumentou que, exatamente por ser uma obra extensa, é inevitável que imprevistos ocorram, ou ainda que ajustes tenham de ser feitos durante a execução.

“É uma obra de mais de 20 km, que cruza uma ponta da cidade na, vai inclusive em outro município. Ela [obra] vai atender essa demanda tão grande da cidade de Goiânia. Não existe projeto perfeito. Todo projeto sofre adequação na sua execução. São 31 estações e quatro terminais. Evidentemente que na execução você poderia ter algum tipo de dificuldade”, justifica.

O titular da Seinfra ainda mencionou a participação do Governo Federal na obra, que liberou a verba para o início da construção, mas evitou transferir a responsabilidade.

“Esse é um projeto que nós recebemos, aprovado pelo Governo Federal, que fez parte desse projeto. Eu não vou colocar culpa não. Acho até que o maior problema, além do projeto, foi na própria execução, já que não é fácil em uma obra dessa magnitude”, continou.

Ao todo, a obra do BRT recebeu 23 aditivos, segundo apurou a reportagem pelo Portal da Transparência. O Jornal Opção ainda elaborou uma breve linha do tempo relembrando pontos mais importantes. Confira:

  • 2014 – União libera cerca de R$ 540 milhões para implantação do BRT. O primeiro prazo era para dezembro de 2016;
  • 2016 – Novo prazo estabelecido ficou para dezembro de 2017 a pedido da empresa vencedora da primeira licitação;
  • 2018 – Após retirada do trecho entre os terminais Isidória e Cruzeiro para nova licitação, as obras são retomadas com um novo prazo de entrega para outubro de 2020;
  • 2020 – O Iphan paralisa as obras no Centro para análise do impacto nos bens que são tombados. Novo prazo fica para maio de 2021;
  • 2021 – Empresa que faria o BRT entre os terminais Isidória e Cruzeiro desiste da obra e nova licitação precisa ser realizada. Foi dado primeiro prazo para outubro de 2022 e, em seguida, para dezembro de 2022;
  • 2022 – Cronograma das obras é refeito e prefeitura anuncia entrega do trecho entre os terminais Recanto do Bosque e Isidória para junho de 2023;
  • 2023 – Mais dois prazos foram dados pela prefeitura: outubro de 2023, e em seguida, para dezembro do mesmo ano;
  • 2024 – O novo prazo de entrega ficou definido para fevereiro de 2024. No final de janeiro, o último aditivo previu entrega da obra para final do segundo mês deste ano.

“As empresas são contratadas no varejo. Contrata uma empresa para cortar os ferros, outra para pintar, outra para colocar os ferros naquele lugar. Então, quem não consegue entregar a obra não é a empresa, mas quem faz a gestão da obra, que tinha que compatibilizar esses elementos, colocar o cronograma e fazer os contratos”, ressalta Maria Ester.

Mais apontamentos

Outro problema apontado por Maria Ester na obra, que pode ter influenciado para atrasos, é a falta de diálogo com órgãos técnicos como o CAU e o Crea. Ela afirmou que, enquanto estava no conselho, procurou a Prefeitura de Goiânia para discutir, mas não adiantou.

“Nós solicitamos, fizemos ofício, a gente pedia projeto, por isso que estou falando que não tem projeto. A gente solicitava, nós participamos de praticamente todas as audiências que aconteceram, a gente reclamou que a obra tinha equívocos. Por exemplo: uma obra que atravessa a cidade de norte a sul e não tem espaço para ciclovia. E é uma obra de mobilidade”, disse.

A arquiteta ainda criticou que a obra do BRT não respeitou o traçado urbanístico do Centro. “Não trouxe uma proposta para fazer estações e plataformas conforme, minimamente, a nossa arquitetura moderna do Centro”, completou.

Lamartine Moreira também afirmou que não houve diálogo com o Crea. O engenheiro apontou ações que seriam imprescindíveis para que a obra fosse realizada da melhor forma possível.

“Entre elas, cito: planejar a construção, consultar os órgãos que poderiam provocar interferências, como o Iphan, Equatorial, Saneago; solicitar aprovação do projeto pela Seinfra, pela SMM e por outros órgãos envolvidos; conferir a documentação de propriedade dos terrenos atingidos, como cruzamento com a Perimetral Norte, Terminal dos Correios; solicitar alvará de aprovação de projeto antes da licitação”, citou.

“Verificar se existem ocupações irregulares e providenciar a relocação, se necessário; não autorizar o início da construção antes da apresentação do projeto executivo; exigir ART do orçamento do projeto colocado em licitação; exigir compromisso de destinação adequada dos resíduos da construção; exigir o licenciamento ambiental prévio da construção; solicitar emissão de alvará de construção pela Seplanh”, complementou.

Lamartine Moreira, presidente do Crea-GO | Foto: Tv Confea

Ainda na visão de Maria Ester, o principal desafio que a obra do BRT enfrentou foi “o fato de tentarem adaptar a cidade inteira a um veículo”. Para a especialista, o ideal seria adaptar o veículo à cidade.

“A gente propôs o inverso, adaptar o veículo à cidade. Você elevar uma plataforma para embarcar é um equívoco. Passar por um centro histórico e não considerar as suas linhas é um equívoco. Colocar plataformas em frente a monumentos, como o Museu de História que nós temos na Praça Cívica, é um equívoco”, elencou.

A arquiteta mencionou a possibilidade de reverter essa situação, reconstruindo e reformulando o projeto, mas admitindo que seria uma tarefa cara e que praticamente começaria do zero.

“O desafio, no caso, agora seria fazer de novo. É possível, vai custar caríssimo, porque tem que desmanchar e fazer de novo. Não necessariamente do zero, mas rever a forma como o acabamento é feito. Por exemplo, a Praça Cívica é um arco arredondado, você imagina o desespero que é para uma arquiteta como eu, que trabalha há 40 anos na área, vendo isso. A última coisa que eles conseguiram fazer foi o arco. Ele é todo mais ou menos, cheio de solavanco. Então, um desafio é esse, adaptar o equipamento à cidade e não adaptar a cidade ao equipamento”, pontuou.

Sobre os problemas apontados e, sobretudo em contratos que a Prefeitura assinou, Denes Pereira atribuiu uma série de fatores que contribuiu para os atrasos na conclusão da obra, mas alegou que a gestão atual assumiu a responsabilidade para entregá-la.

“Quando o prefeito Rogério assume a obra, que já era para ele ter assumido com ela pronta, mas ele recebe a obra com uma série de problemas. Tivemos problema ambiental, de ajuste de projetos, com o Iphan. Você não mexe com a cidade sem ter problema com o patrimônio histórico. Isso é natural, não poderia demorar esse tempo, deveria ter entregue antes. Agora, é extremamente importante dizer que, desde quando o prefeito Rogério assumiu a obra, ele partiu para cima pra entregar, tanto que agora nesse mês ele entrega”, garantiu.

O secretário revelou que o custo inicial da obra do BRT começou com cerca de R$ 240 milhões do tesouro municipal, recebendo um acréscimo de 25% em aditivos, que é o que a “legislação determina”. Sendo assim, o valor final para os cofres da Prefeitura ultrapassa os R$ 300 milhões. Somando-se à verba destinada pelo Governo Federal, a obra vai beirar o R$ 1 bilhão.

Em nota à reportagem, a Seinfra informou que o valor inicial do contrato foi de R$ 242.417.423,98, e até o momento já foram gastos R$ 319.297.510,51 na obra. É importante salientar que os valores são apenas do tesouro do Município.

Secretário Denes Pereira | Foto: Léoiran/Jornal Opção

E a mobilidade?

Como a obra do BRT também é voltada para resolver o problema da mobilidade em Goiânia, surge o questionamento: será solução ou vai piorar? Para Maria Ester, em alguns aspectos o cenário não é positivo.

“Se eu fosse considerar um projeto que resolve o problema da mobilidade, inclusive conforme o plano que foi publicado recentemente, as calçadas deveriam ter prioridade. Olha o que aconteceu lá na Quarta Radial, onde eles destruíram as calçadas. Olha o que aconteceu na 90, entre a Praça do Cruzeiro e a Avenida 136. Você não consegue mais andar na calçada, que é o mínimo do mínimo. Então, eu quero resolver o problema de mobilidade? O pedestre vem primeiro lugar”, afirmou.

Para o presidente do Crea-GO, a princípio concentrar o fluxo em uma região pode ser prejudicial. “Aparentemente, o direcionamento de várias avenidas para a Praça Cívica é um fator prejudicial ao fluxo de veículos. A resolução vem com a utilização de diversas medidas combinadas, analisadas com o auxílio de um engenheiro de tráfego. Como foi feito depois, o Plano de Mobilidade talvez sugira algumas modificações, se for necessário”, disse.

Por fim, Maria Ester criticou que a obra ainda não está em conformidade com as necessidades da cidade em termos de funcionalidade, como a sinalização, não só para o goianiense, mas também para o visitante.

“Não tem uma sinalização adequada. À noite, os lugares da obra é escuro. Se você não conhece muito a cidade, você acaba se perdendo, pode causar até um acidente de trânsito nesses trechos que ficaram em obra. Do ponto de vista da execução, a gente está na idade da pedra, a anos-luz de qualquer possibilidade de falar que a gente tem tecnologia bacana”, finalizou.

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