Advogado de assassino de veterinário quer fazer latrocínio virar legítima defesa
31 março 2014 às 17h18
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Crime de grande repercussão ocorrido em outubro de 2013 em Goiânia será julgado nos próximos dias. Para tirá-lo da pena por roubo seguido de morte, advogado tentará convencer juiz de que assaltante matou para não ser atropelado
Frederico Vitor
Um dos casos de maior repercussão e comoção pública em Goiânia poderá ter um final ainda mais trágico nos tribunais em virtude de uma possível aberração jurídica. É que a defesa do acusado de ter matado o veterinário João Fidélis da Silva Neto, 50 anos, da Clínica Veterinária Dog Center, vai tentar livrar a barra de seu cliente ao alegar que este matou para não ser atropelado numa situação de assalto. Isto mesmo: para os advogados Gilberto Carlos Morais e Diego Rodrigues da Silva, o autor do crime, Kaye da Silva Santos, 18, teria assassinado o veterinário para não ser atingido pelo carro da vítima.
Todavia, a tática do advogado não poderá ter consistência durante o julgamento. Essa é uma manobra para que o acusado seja sentenciado por crime doloso contra vida, e não por latrocínio — tentativa de roubo seguido de morte. Isto porque a pena mínima prevista para o crime de latrocínio é de 20 anos de prisão em julgamento sem júri. Caso o Judiciário se convença de que o acusado cometeu um homicídio doloso, Kaye da Silva vai a júri popular e a pena mínima é de 12 anos. “Queremos tirar a tese do latrocínio. O que houve foi um assassinato em virtude natural da ocasião”, diz Gilberto Carlos.
A defesa sustenta que o acusado teria passado a tarde do dia anterior do crime nas imediações do Parque Vaca Brava, no Setor Bueno, consumindo drogas. Ao vagar pela rua na madrugada, teria sido vítima de uma suposta tentativa de atropelamento. “Ele foi enfático em sua oitiva e disse que estava drogado e não se lembrava de nada. Roubo ele afirma que não fez, inclusive há testemunhas que dizem isso. Ele portava uma arma para se proteger de traficantes”, explica Gilberto Carlos.
Ocorre que a tese sustentada pela defesa não é o que consta na denúncia encaminhada ao Judiciário pelo Ministério Público (MP-GO). Na noite de 23 de outubro de 2013, o veterinário João Fidélis e a anestesista Louise Pereira Mortate retornavam de uma festa na casa de um amigo em comum, no Setor Parque Oeste Industrial. Por volta das 2h20, já na madrugada do dia 24, ambos deixaram a confraternização e foram para a clínica veterinária onde trabalhavam, na Avenida Assis Chateaubriand, Setor Oeste. Em seguida, quando percorriam o itinerário para as respectivas residências, ao passar pela Rua T-52, nas proximidades da Avenida T-1, no Setor Bueno, o veterinário foi surpreendido por Kaye da Silva, que empunhava um revólver calibre 38.
Na tentativa de parar o veículo de João Fidélis para em seguida roubá-lo, de acordo com relatos de testemunhas, o acusado saltou na frente do Hyundai HB 20 do veterinário e efetuou vários disparos em sua direção. Neste instante, a vítima perdeu o controle da direção do carro e colidiu em um muro. Louise, que passava pelo local momento após a ação criminosa, ao se deparar com o automóvel do amigo batido, parou para prestar socorro. Neste momento, aproveitando da vulnerabilidade da anestesista, o acusado entrou novamente em ação.
Desta vez, sem a posse da arma — todas as munições foram usadas para neutralizar e matar João Fidélis —, o acusado entrou em luta corporal com Louise, agredindo-a com socos e exigindo a chave de seu Fiat Palio para que pudesse impetrar fuga consumindo a subtração do veículo. Após conseguir apanhar a chave das mãos de Louise, Kaye da Silva fugiu da cena do crime deixando para trás a arma usada no delito e o celular, que caiu no chão durante a luta com a anestesista.
Crime bárbaro
João Fidélis chegou a ser socorrido pelo Samu, mas não resistiu aos quatro tiros no abdome e morreu no dia 26 de outubro, na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo). Terminava assim, de forma trágica, a vida do veterinário conhecido em Goiânia por “doutor das mãos mágicas”. Sua fama se devia ao fato de que não havia cães ou gatos que não pudessem ser salvos por ele, mesmo que as perspectivas não fossem favoráveis. Dois dias antes de ser morto, ele recebeu indicação Prêmio Médico Veterinário Destaque de 2013, categoria Clínica Médica e Cirurgia Animal, pelo Conselho de Medicina Veterinária do Estado de Goiás (CRMV-GO).
Após a morte do veterinário, começou a investigação em busca do paradeiro do acusado pela Delegacia de Investigações de Homicídios (DIH) da Polícia Civil, a cargo do delegado adjunto Braynner Vasconcelos, atualmente lotado no 3º DP em Goiânia. Apesar do período de greve pelo qual a polícia passava naquela época, Kaye da Silva foi preso no dia 4 de novembro, em uma casa alugada no Bairro Veiga Jardim 4, em Aparecida de Goiânia, Região Metropolitana da Capital.
O delegado Breynner Vasconcelos declarou à imprensa que, apesar da prisão do suspeito, as investigações continuariam a fim de verificar se houve a encomenda do veículo. Isso porque normalmente quando há o roubo de um carro, há um receptador. Essa hipótese não foi confirmada no inquérito policial. Justamente por esta questão, o processo se encontra em segredo de Justiça, devido aos sigilos telefônicos que foram quebrados no curso da investigação.
Kaye da Silva teria confessado a autoria da morte de João Fidélis e que teria passado a tarde do dia do crime consumindo crack no Parque Vaca Brava, no Setor Bueno — fato ainda não comprovado. Ele teria relatado que ao ver o carro do veterinário imaginou que o condutor poderia portar uma boa quantia em dinheiro, por se tratar de veículo novo e chamativo — Kaye da Silva alega que teria confundiu o Hyundai HB 20 da vítima com um i30, modelo de luxo da mesma marca.
Latrocínio “evidente”
Para o delegado, as apurações deixaram claro que o crime foi um latrocínio “evidente”. Apesar de Kaye ter quebrado a perna esquerda durante a ação criminosa que culminou na morte do veterinário, a polícia não acredita que João Fidélis teria tentado atropelá-lo. Após abandonar o Palio de Louise em um local ermo, em Aparecida de Goiânia, o acusado chegou a embarcar em um táxi até o Hospital dos Acidentados, na Avenida Paranaíba, no Centro de Goiânia.
Segundo o promotor da 13ª Promotoria de Justiça de Goiânia, Fausto Campos Faquineli, em base no que foi observado no processo, é absolutamente improcedente a tese do advogado de Kaye em alegar legítima defesa. Para o promotor, a versão não encontra sustentação por não harmonizar-se com o resultado da perícia técnica realizada no carro de João Fidélis. “Pelo que nós verificamos, dá para induzir que o acusado se posicionou lateralmente ao carro e, após a colisão, desferiu os tiros”, diz.
Outro fato comprovado pela perícia, que desconstrói a tese de que Kaye Silva efetuou disparos na direção frontal do carro, no momento em que supostamente seria atropelado, é a ausência de marcas de tiros tanto no parabrisas quanto na lataria dianteira do HB 20. Tal fato comprova que os projéteis foram desfechados lateralmente. Inclusive, não há perfurações nem no vidro e tampouco na lateral esquerda do carro, dando a entender que o vidro estava aberto, possibilitando que os tiros atingissem o abdome de João Fidélis.
Pena máxima
A audiência de instrução do caso já foi realizada e todas as fases do processo concluídas. O próximo passo agora é a sentença. Como Kaye da Silva é acusado pelo crime de latrocínio e roubo, o julgamento não terá júri popular. O processo se encontra na 8ª Vara Criminal da Comarca de Goiânia, cujo magistrado responsável é o juiz Rogério Carvalho Pinheiro. O acusado está preso no Centro de Prisão Provisória (CPP) e se for condenado por latrocínio, poderá ser apenado entre 20 a 30 anos de prisão. Pelo roubo do Fiat Palio de Louise Pereira, poderá pegar mais cinco anos. A expectativa do MP e da família da vítima é que o acusado pegue no mínimo 25 anos de cadeia.
De acordo com o advogado da família da vítima, Mauracy Andrade de Freitas, de nada adiantará a manobra da defesa do acusado, já que o crime de latrocínio foi claro tanto à polícia quanto ao MP, e a tendência é que o Judiciário também tenha o mesmo entendimento. “As provas levam a conclusão que foi latrocínio. Não há como querer desconstruir um fato criminoso e tipificado na legislação apenas com argumentos”, ressalta o advogado, que é sobrinho de João Fidélis.