E os cadáveres, deitados, enfileirados, o acompanhavam pela Via Dutra, por toda a Via Dutra. Precisava chegar até o Galeão, precisava fugir para longe daquilo

Já era madrugada quando Genilwan resolveu desligar a TV. Não assistia mais a canais abertos fazia muito tempo, e não havia nada naquela noite de junho que lhe interessasse na programação a cabo. Era da old school da telinha, para quem na infância controle remoto foi um luxo e tendo crescido numa família que comprou videocassete em consórcio. Nada ligado em séries, Netflix, essas coisas, soava tudo fantástico demais naqueles enredos.

Mão no interruptor, luz da sala desligada, partindo do sofá para a cama teve uma leve tontura e foi se deitar com uma sensação ruim. Não era nenhum medo pessoal em relação à própria saúde. Mas juntou o pouco de intuição destinado aos homens com o bom conhecimento que as décadas lhe deram sobre o próprio corpo para prever que o sono lhe traria uma viagem turbulenta. Uma “bad trip” estava a caminho.

E se tinha uma coisa forte na família Urbano era o senso de urgência e de empatia. Genilwan desde pequeno se viu forçado a disputar atenção com plantões, pronto-socorros e antessalas. Era a herança do lar simples construído pelo motorista de ambulância Genílson e pela enfermeira Wanderléa – que tinha orgulho de ser loira natural e de ter nascido no mesmo ano da cantora famosa. Quando nasceu o primogênito – que ainda não sabiam que seria o único – teve a ideia bem brasileira e nada original de eternizar a fusão de seu amor no nome do filho.

Na minibio do catarinense, o pai nascido em Atalanta, pequeno município no centro de Santa Catarina, a quase 200 quilômetros de Florianópolis, e que conheceu a mãe ao tentar a vida em Porto Alegre com aquilo que gostava de fazer: dirigir. O casal da saúde se conheceu no ambiente de trabalho. Quando se casaram, a vida cara do pós-milagre econômico dos militares os forçou a morar em Lomba Grande, zona rural de Novo Hamburgo, na região metropolitana da capital.

Genilwan lá nasceu e cresceu. Numa reviravolta da vida, o gauchinho esforçado no colégio ganhou vaga de intercâmbio para morar com uma família em Nova York. Que saga! Ali criou laços e, mais tarde, já formado em Geografia, voltou para continuar os estudos, que o acabaram por levar até Manaus, em um pós-doutorado em Demografia.

Era lá que estava, naquela noite, na cama em que ao mesmo tempo se acomodava e se incomodava. Por isso custou a fechar os olhos, em um auto de resistência. Dormia tarde, mas não tinha insônia. Não queria sonhar, porque não seria sonho bom. Mas Morfeu venceu, como sempre, e o levou até São Paulo.

Avenida Paulista, coração econômico da capital financeira do Brasil. Não tinha como não olhar para cima. Os arranha-céus que se erguiam com a força da grana e a feia fumaça que Caetano denunciou por apagar as estrelas estavam ali, admiráveis expressões da riqueza que inebria e das cinzas que a constroem. Se primeiro mundo tem cheiro, era o que ali lhe entrava nas narinas. Mas foi por elas que também começou a sentir algo estranho no ar.

E então desceu o olhar. E viu que o odor era o horror. Corpos. Enfileirados. Corpos enfileirados, estirados de modo que os pés de um cadáver estavam como que apoiados na cabeça do próximo. Dez, vinte, cem, a avenida inteira.

O horror estava também ao lado, tentando se comunicar com as pessoas e as vendo passar pela cena macabra como se nada enxergassem, tropeçando em mortos e continuando a caminhada, às vezes sem tirar o olho da tela do celular e com o rosto resplandecendo uma risada provocada por algum meme. Viu à frente um grupo de senhores vestindo amarelo cantando o hino dos Estados Unidos e batendo continência para uma caixa de remédio gigante e pensou estar tendo alucinações. Mas sua preocupação eram aqueles mortos. 

Atônito, viu que os automóveis, ônibus, pessoas (as vivas) haviam desaparecido. Começou a acompanhar aquele necrocordão que parecia não ter fim – e realmente não tinha. Chegou à Praça da Sé, a fila cadavérica também, de repente o pânico já o fazia correr até a Marginal Tietê. Queria fugir dali e uma voz – sim, agora ouvia vozes, e achava normal no quadro alucinado – lhe disse que precisava ir até o Rio de Janeiro.

Saiu, com rumo criado pelo aleatório e sem olhar para trás, como um Forrest Gump fugido de Gomorra. Começou a correr a pé, perdendo o fôlego que ousava buscar e que puxava cada vez mais forte para se livrar da cena dantesca e inescapável. Um cadáver atrás do outro e assim se seguia.

Por mais escatológico que pareça, porém, eram eles sua única companhia na estranha empreitada sem sentido aparente. A estrada também estava deserta. Só os cadáveres, enfileirados, o acompanhavam pela via. A Via Dutra, infinita Via Dutra. São José, Taubaté, Nossa Senhora Aparecida. Só Genilwan, os mortos e sua romaria exótica e intrépida.

Nos seus pés já não tinha sapatos, havia só vontade de correr dali. Cruzou a divisa, São Paulo ficou para trás, já era o Rio dali em diante. Via nas placas da via: “Mesquita”, “Resende”. Eram nomes de cidades, mas também de famílias, e pensava, para se distrair da angústia, “quantos destes que me acompanham no caminho se chamavam Mesquita, Resende? E teria algum Urbano?”. Com certeza, eram centenas, ou milhares, talvez já tivesse passado por um tio ou um primo distante naquela fila mórbida.

Entre as divagações, a voz no ouvido, o Rio, precisava chegar, o Rio de Janeiro, fevereiro e março, que também estava vermelho em junho. Sentia que precisava ir até o fim da Avenida Brasil. E agora entendia: sua saída era o Galeão. Era isso que estava determinado, então – para escapar da fila de mortos, precisava fugir, voar para longe.

Mas Genilwan estava errado. Quis, mas simplesmente não pôde. Avistou o aeroporto como uma miragem e, logo em seguida, a estrada criou vida, fez uma curva e se elevou, deixando a correntes de mortos mais à vista e o Galeão às suas costas. Corria agora sem querer continuar, mas sem poder parar. Descontrolado, tinha joelhos de aço para suportar o peso. E os cadáveres da fila interminável já eram tantos que passaram a parecer ser o mesmo. Não fazia mais diferença. Nem lhe batia mais o medo. Acostumara-se com o horror.

Enquanto corria à força, o desespero foi virando pragmatismo. Precisava dar um jeito de fazer aquilo acabar, embora não soubesse como. Só queria sobreviver e passou a fingir que aquele cordão incessante de corpos ao seu lado ali não estava. Que era um adorno da estrada, como faixas longitudinais acessórias da sinalização. Era isso! Não seriam mais corpos: eram só uma pintura utilitária. 

A corrida parecia estar no fim, porque voltava para o começo. Vislumbrando as mesmas cidades pelas quais havia passado na ida – Resende, Mesquita, Aparecida –, lá estava Genilwan e os corpos-pintura. Genilwan, os corpos e, de repente, as motos. Sim, súbitos roncos de motos, fortes, quebrando o silêncio sepulcral. Eram motos estradeiras, de passeios de grupos vestidos de jeans e coletes escuros de couro, comuns por ali, mas não dessa forma. Passaram por ele como um enxame imenso de abelhas, zunindo às centenas, milhares, talvez milhões. Não tinha como seguir em frente e, ao mesmo tempo, contá-las. Mas teve como ver o terror: no lugar de rostos, caveiras.

Genilwan só queria correr para longe daquilo. Que o sonho acabasse, que ele nunca mais sonhasse, que nunca mais dormisse, ou que dormisse para sempre. O que não queria mais era aquele inferno de Dante em vida. E ao longe no horizonte, avistou o paliteiro de onde havia saído. Era a gigante metrópole chegando. E os carros reapareceram, mas carros funerários, aos milhares trafegando como em missão de urgência pela rodovia e – já dentro da capital – também pelas avenidas que percorria. Estavam a recolher os corpos e, entre os motoristas, pareceu ver seu pai, aposentado anos antes e morto meses atrás.

Na Praça da Sé, de novo, a voz lhe disse, como um GPS de Walking Dead: “Você chegou ao seu destino”. Sua missão tinha terminado. Genilwan acordou, atormentado. Estava vivo, mas não aliviado. Afinal, era empático. E, de certa forma, tinha todas as razões para se sentir um sobrevivente daquela noite.
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Texto em memória dos 500 mil mortos pela pandemia no Brasil.
A estatura média das vítimas da Covid-19 no Brasil (no total de 56% homens e 44% mulheres) é aproximadamente de 1,68 metro. Com esse número multiplicado por 500.000, chega-se ao total de 840.000.
São 840 mil metros, ou 840 quilômetros, a distância aproximada, em ida e volta, entre o centro de São Paulo e o Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão), Rio de Janeiro. 
Até 19 de junho de 2021, a pandemia no Brasil havia produzido 840 km de corpos, se fossem enfileirados. Infelizmente, ainda é uma estrada que parece não ter fim.