A queda das estátuas é reparação histórica?

21 junho 2020 às 00h04

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Na discussão entre perpetuação da opressão ou preservação do legado, estátuas têm tombado e documentos históricos têm sido apagados

Nos protestos por igualdade racial que se espalham através da América e do mundo, uma cena é recorrente: caem as estátuas em homenagem a figuras históricas cuja biografia é controversa. Em seu lugar, pedestais vazios ostentam pichações de censura a seus feitos, celebrados no passado mas inaceitáveis no presente. Sob a representação de Cristóvão Colombo, em Providence, Estados Unidos, lê-se: “pare de celebrar genocídio”.
Além de ter encontrado o continente americano em 1492, Cristóvão Colombo também foi governador e vice-rei das “Índias” (hoje, o país caribenho da República Dominicana). Segundo historiadores, em resposta à agitação e revolta dos nativos, Colombo ordenou uma repressão brutal na qual muitos foram mortos. Em uma tentativa de impedir mais rebeliões, Colombo ordenou que seus corpos desmembrados fossem exibidos pelas ruas.
No rastro das manifestações que seguiram a morte de George Floyd, a agitação de grupos minoritários tem como um de seus alvos os personagens históricos reconhecidamente racistas. O escritor e jornalista italiano Indro Montanelli – que quando servia o exército fascista durante a invasão italiana na Abissínia (hoje Etiópia) chegou a comprar uma africana de apenas doze anos como escrava – teve sua imagem em Milão depredada. Sob ela escreveram “racista estuprador”.

Dada a injustiça de séculos que sofreram essas minorias, é fácil se deixar levar pelo calor do momento e celebrar a destruição das imagens como uma crítica do modelo do passado, como uma recusa de seguir o pensamento que nos levou até esta desigualdade. Não é preciso ir longe: em Goiânia temos o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva (filho) no cruzamento da avenida Anhanguera com a Avenida Goiás. O Anhanguera Segundo herdou a alcunha de seu pai, que em tupi significa “diabo velho”, devido a crueldade pela qual os nativos o reconheciam. Talvez, ao destruir o Monumento ao Bandeirante, estaríamos caminhando para uma sociedade mais justa… de alguma forma.
Entretanto, se refrearmos este primeiro instinto, podemos ouvir o que os campos da história e das artes plásticas têm a dizer sobre o assunto. O historiador Sérgio Duarte é professor adjunto na Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador no Kulturwissenschaftliches Institut, em Essen, Alemanha. Ele afirma: “Se cada grupo que surge começar a destruir documentos históricos (e é isso que estátuas são), nós ficaremos vazios, sem referência. Em Goiânia isso é ainda pior, porque temos poucos monumentos”.

Com seus três metros e meio de altura de puro bronze, armado de bateia e bacamarte, o bandeirante da Avenida Goiás faz uma referência ao ciclo do ouro, primeiro motivador da colonização da região pela coroa portuguesa. “Se reduzirmos este símbolo ao genocídio indígena, vamos ignorar o ciclo das bandeiras que garantiram a ampliação nacional e a unidade linguística brasileira”. Não que uma coisa justifique outra – ele esclarece. Afinal, as estátuas nos mostram de onde viemos, e não para onde desejamos ir.
Indro Montanelli, por exemplo, ajudou a combater os fascistas a quem serviu em 1933. Durante a Segunda Guerra Mundial, Montanelli cobriu criticamente a invasão alemã na Polônia pelo jornal Corriere della Sera, e posteriormente pegou armas junto ao grupo guerrilheiro socialista e liberal Giustizia e Libertà. Estes fatos não transparecem na sumário resumo ao pedestal da estátua “racista estuprador”.
Nada impede que se mude a relação com a memória
Do ponto de vista prático, Sérgio Duarte afirma ser cético quanto ao poder que estátuas têm de educar as pessoas que passam diante delas todos os dias – mas este ceticismo também se aplica quando se afirma que a estátua de um bandeirante tem o poder de oprimir os descendentes de indígenas que a contemplam. “Na prática, para que serve uma estátua? É só uma exaltação simples do passado que dá dinheiro para quem a constrói.”

Então, de onde vem a defesa das homenagens que Sérgio Duarte teceu quando se propôs sua destruição? Não de um apego material às figuras de bronze, mas da rejeição ao impulso mal-informado de destruição. “É uma ideia frágil, infantil, porque não é orientada pelos parâmetros da história da arte, semiótica, psicologia, ou coisa que sirva para reconstruir uma relação com a memória. Por este paradigma, uma vez que as estátuas forem ao chão, você terá de encontrar outra coisa para destruir e satisfazer sua sanha desorientada por justiçamento”.
Isso não significa, segundo o historiador, que estamos condenados a idolatrar ídolos construídos com propósitos românticos há muito esquecidos. “Nada impede que se mude a relação com a memória”.
Assim, a forma desejável de se relacionar com documentos do passado, de acordo com a historiografia, talvez fosse a seguinte: Vejam, o Monumento ao Bandeirante foi construído em 1942, por Armando Zago, quando Goiânia tinha apenas nove anos de idade. Eles precisavam de mitos inspiradores para simbolizar a Marcha para o Oeste e unificar o território nacional. “O que isso nos diz sobre as pessoas que o fabricaram? Talvez a relação dessas pessoas com o passado tenha de ser rediscutida, talvez não nos ajude mais”.
Aos olhos do artista
Joardo Filho é um artista artista plástico anapolino com pós-graduação pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG) e já realizou exposições sobre o tema do apagamento de monumentos em espaços públicos.
Italo Wolff – O que te inspirou a fazer o apagamento do bandeirante? O passado de Bartolomeu Bueno da Silva foi levado em consideração?
Joardo Filho – O meu trabalho como artista é, principalmente, observar, refletir e propor formas de percepção da realidade. Eu tenho visto desde 2012 diversos grupos de militantes questionando a legitimidade desse monumento, alegando que é inaceitável homenagear um personagem que empregou enorme violência contra indígenas que viviam nessa região. Então, eu quis criar essa fotografia que apresenta o pedestal vazio. Sim, eu gosto da ideia de ver o cruzamento das avenidas Anhanguera e Goiás livre da presença dessa figura. Mas minha inspiração como artista é mais no campo da sensibilidade e das ideias, eu queria que as pessoas vissem essa realidade alternativa onde o vazio toma o lugar do “herói”.

Italo Wolff – A quais impressões você chegou com sua obra do apagamento do bandeirante?
Joardo Filho – Sem a estátua, a atenção é guiada ao pedestal, que é enorme. Com o jogo de perspectiva da fotografia, ele ainda parece ter a escala dos prédios à sua volta. Considero uma cena bonita, feita para ser contemplada por seu aspectos estéticos e pelo simbolismo. Quando exponho ao público, vejo o alcance da arte: potente e insignificante ao mesmo tempo. Percebo que às vezes provoca as pessoas, às vezes inspira, mas não muda a história.
Italo Wolff – Com os recentes protestos por igualdade racial através do mundo, estátuas de personagens históricos (como a estátua do negociador de escravos Edward Colston, jogada ao mar em Bristol, Inglaterra) foram removidas pela população. O que você pensa deste tipo de manifestação? É legítimo? Pensa que produz modificações desejáveis no espaço público?
Não creio que cabe ao artista legitimar ou não essas manifestações políticas. Nesses casos específicos, acho importante ouvir desses grupos o que eles pensam ao terem que lidar com tais estátuas em posição de destaque no espaço público. O que minhas pesquisas têm mostrado é que esses espaços são palco de disputa constante e podem, inclusive, ser ressignificados por diferentes grupos.
Italo Wolff – Você acredita que, caso não existissem, menos habitantes da cidade conheceriam o passado de sua terra? Os monumentos são eficientes em educar as pessoas sobre o passado; ou em oprimir minorias prejudicadas pela figura retratada?
Joardo Filho – Os monumentos me parecem uma ferramenta muito rica para narrar o passado, mas não simplesmente com a sua existência no alto dos pedestais. Os inúmeros bustos e estátuas espalhados pelas cidades tendem a ser ignorados e esvaziados de sentido para grande parte da população. Mas as histórias que envolvem os monumentos poderiam nos ensinar sobre contradições, avanços e retrocessos da sociedade.
O Anhanguera tem em sua biografia a escravização e o genocídio de indígenas. Por outro lado, com 78 anos, é uma das obras artísticas mais antigas de Goiânia. Caso os protestos chegassem até aqui e a remoção do Anhanguera fosse colocada em pauta, quais considerações você faria sobre o assunto?
Se o poder público quisesse minha opinião como profissional da cultura, eu diria que talvez esteja na hora do Diabo Velho descansar dentro de um espaço museológico, onde seja ensinado aos visitantes o que foram as Bandeiras, como e porque os paulistas criaram esse mito dos desbravadores heróicos e a que preço trouxeram o “progresso” ao Centro-Oeste. Mas se a estátua for mantida no centro de Goiânia, é interessante pensar que ela estará sempre na iminência de ser derrubada por uma ação popular.