Pessoas que sofreram da forma grave da doença compartilham com o Jornal Opção suas lutas contra as dores físicas, mentais e sociais

Paciente de Covid-19 faz fisioterapia para recuperar movimentos | Foto: Reprodução

Desde o dia 12 de março de 2020, quando os primeiros casos de Covid-19 foram confirmados em Goiás, 1,18 milhão de pessoas já contraíram o coronavírus. Isso significa que praticamente uma a cada cinco pessoas no Estado já teve a doença e, com quase 26 mil mortos, um a cada 250 goianos morreu. Para todos nós, o vírus transformou a forma de ver o mundo, mas a mudança foi especialmente profunda para os primeiros sobreviventes da forma grave da doença.

O Jornal Opção entrou em contato com alguns dos infectados que passaram longos períodos em tratamento intensivo por conta da doença, até então desconhecida, para observar as transformações que as experiências de quase morte trouxeram em suas perspectivas sobre a vida. Além de sequelas debilitantes e duradouras, as vítimas relatam o medo, o preconceito e profunda transformação pessoal como as principais transformações trazidas pela pandemia.

O vírus, que diminuiu a expectativa média de vida em 2,2 anos em relação a 2019, pode ter deixado milhões de pessoas com sequelas e traumas. Segundo pesquisa do Penn State College of Medicine, publicado no periódico médico Jama, metade dos sobreviventes da forma grave da doença carregarão sintomas por longos períodos após a cura da Covid-19. 

Consequências físicas

Leandro Moro é recebido por familiares e amigos ao ter alta após 81 dias internado | Foto: Reprodução/PM-GO

O sargento da Polícia Militar Leandro Moro contraiu a Covid-19 em junho de 2020, na primeira onda da doença. Com dores de cabeça, febre e tosse seca, o policial foi atendido pelo médico em plantão no Hospital do Policial Militar de Goiânia (HPM), que receitou remédios e disse que seu caso era preocupante, mas preferiu não interná-lo. Três dias depois, com febre alta e baixa oxigenação, ele teve de ser intubado.

Leandro Moro é um recordista: passou 57 dias na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), 24 dias intubado e sedado, 11 dias respirando por traqueostomia, 35 dias em ventilação mecânica. Foram 81 dias no hospital e mais vários meses em tratamento domiciliar, com suporte respiratório. Ele chegou a ter 90% dos pulmões comprometidos pela infecção e precisou de hemodiálise por 35 dias, pois seus rins deixaram de funcionar. 

Recebeu alta no dia 6 de setembro, festejado como um vencedor pela equipe do hospital. Entretanto, sua luta não terminou: Leandro Moro perdeu 40 quilos, principalmente de massa muscular, e teve de reaprender a caminhar, a falar e a engolir. Foram várias sessões de fisioterapia e fonoaudiologia.

Com sequelas graves, Leandro Moro nunca pôde retornar a sua profissão. O policial ficou surdo do ouvido direito; teve uma lesão no nervo ciático por ter passado várias semanas pronado; teve comprometimento do nervo fibular esquerdo e, por isso, caminha com dificuldade. Até hoje faz consultas frequentes com neurologistas e pneumologistas e relata se cansar com mínimos esforços.

Entretanto, são as sequelas neurológicas as que mais aborrecem Leandro Moro:  “Eu tive bastante lucidez até ser intubado, mas, após 24 dias sedado, a consciência foi retornando aos poucos”, conta. “Tive muitos dias de delírio, alucinações. Minha família negava muitas das coisas de que eu me lembrava vividamente. Até hoje tenho lapsos de memória, amnésias pontuais. Recentemente, fui ao hospital fazer exames e me esqueci; as contas chegaram e eu não sabia pelo que estavam me cobrando.”

Contudo, Leandro Moro se diz feliz por estar vivo. Ele teve sepse duas vezes – antigamente chamada de septicemia, é a infecção generalizada, o quadro máximo de inflamação sistêmica. “Quando cheguei nesse ponto, os médicos não tinham o que fazer. Disseram para a minha família que não havia muita esperança para mim.”

Leandro Moro relata que a experiência foi profundamente transformadora: “Quando acordei e a lucidez voltou, eu quis valorizar muito mais as pessoas à minha volta, meus familiares e amigos. Eu percebi que perdi muito tempo fazendo coisas que, na realidade, não têm importância. O que realmente fez a diferença foi a dedicação daqueles que amam e que fizeram 864 horas de oração ininterruptas por mim. Essas pessoas se revezaram em uma corrente de fé, rezaram em minha igreja, intercederam espiritualmente por mim. Eu acredito que, se não fosse por isso, eu não teria sobrevivido.”

Consequências mentais

João Batista Silva Filho e sua esposa, Carleane, começaram a manifestar sintomas leves da Covid-19 na véspera do Natal de 2020 e, por isso, decidiram ficar isolados durante o feriado. Com o agravamento dos sintomas da mulher, o casal foi ao pronto-socorro e ambos fizeram exames de raios-X, que não indicaram comprometimento pulmonar. 

João Batista, um sobrevivente | Foto: Reprodução

No dia 28 de dezembro, com tosse seca e persistente, febre alta e baixa oxigenação, João Batista foi aconselhado pela sobrinha médica, Gláucia Naves, a procurar um hospital. Quatro dias após a primeira radiografia, João fez outro exame e constatou que 75% de seus pulmões estavam comprometidos. Ele foi internado e recebeu oxigênio via cateter nasal, mas não sentia falta de ar. Pensava estar se recuperando.

Na véspera do ano-novo, ele ouviu uma conversa entre sua esposa e o médico, que informava que ele deveria ser transferido de hospital e ir para uma UTI. Foi apenas então que percebeu que seus problemas estavam longe de terminar. “Fui transferido para o hospital da Hapvida de ambulância. Quando me tiraram de maca e me separei de minha esposa, eu percebi que poderia não vê-la mais, e foi aí que eu fiquei realmente preocupado.” 

Internado na UTI, João Batista não se lembra de muita coisa, mas um choque o perturbou. “Vi gente morrendo ao meu lado; vi funcionários tirando os corpos todas as manhãs no ambiente em que eu estava. Acho que comentei algo com os enfermeiros, que me deram alguma medicação sedativa para que eu não ficasse vendo aquilo”. 

No dia 2 de janeiro de 2021, às 10 horas da manhã de um sábado, o médico conversou com João Batista. “Ele veio me pedir autorização para me intubar. Eu sabia que, naquele momento da pandemia, a maioria dos intubados morria. Foi aí que eu fiquei sabendo a data, porque não havia janelas na UTI e não existe noção da passagem de tempo – eu não sabia se estava lá há dias ou semanas, não sabia se era noite ou dia”.

No mês em que João Batista foi submetido à respiração artificial, 80% dos pacientes intubados por Covid-19 morreram. Mas, felizmente, 14 dias depois, João Batista se firmou no grupo dos 20% que se salvariam. Cinco dias após ser extubado, acordou. “Os médicos me disseram que não sabia como eu havia voltado. Foi uma surpresa para todos.”

Ao todo, foram 38 dias internado. Com dores e imobilizado pela perda de músculos, ele relata ter sofrido imensamente, e que o sofrimento foi amenizado apenas pela atenção e cuidados da equipe do hospital. “Voltei como uma criança, sem capacidade de falar, me mover e mesmo de engolir.” Após muitas sessões de fisioterapia e fonoterapia, João Batista teve de aprender a comer e se movimentar novamente, de forma que conseguiu caminhar apenas 3 semanas depois de ter recebido alta e ido para casa.

Como herança da Covid-19, João Batista hoje sente dores nas pernas e coluna, além de ter ficado com a visão comprometida e sofrer de fotossensibilidade. “Me canso com facilidade, sinto dores agudas que vêm do nada, duram alguns minutos, e desaparecem”, ele diz. Entretanto, suas sequelas mais debilitantes não são físicas.

“Eu sempre fui uma pessoa extrovertida, muito brincalhona”, lembra João Batista. “Mas, com toda essa experiência, desenvolvi depressão. Já estive pior, mas até hoje me pego isolado, querendo distância das pessoas, chorando muito. Em meu pior período, pedi à minha esposa que ficasse próxima de mim durante o dia, porque não sabia o que faria se ficasse sozinho. Ainda tenho episódios de muito medo e tristeza que preocupam meus amigos e familiares.”

Consequências sociais

Joel Sant’Anna | Foto: Reprodução

O atual responsável pela Secretaria Estadual de Indústria e Comércio (Sic), Joel Sant’Anna, relata que foi um dos primeiros contaminados pelo vírus no Estado. Ele contraiu a doença durante uma viagem de avião de Lisboa para Brasília nas primeiras semanas de março de 2020, quando nem Goiás nem Portugal tinham casos confirmados da doença. No vôo da TAP, entretanto, o secretário viajou ao lado de franceses e italianos que já estavam infectados. 

Os sintomas de febre e dores de cabeça começaram no dia 14 de março. Joel Sant’Anna foi atendido por médicos que ainda desconheciam a Covid-19 e, sem um protocolo consolidado para diagnóstico, trataram a doença como sinusite, receitando corticóides. Atualmente, os antiinflamatórios e imunossupressores corticóides são utilizados para combater a Covid-19, mas apenas em casos graves para evitar a reação exacerbada das defesas do organismo. 

Com a persistência dos sintomas, Joel Sant’Anna se consultou com outros médicos que acreditaram que ele sofria de labirintite e insistiram nos corticóides. Foi apenas após seis dias, no Hospital Anis Rassi, quando as tomografias e exames de raios-X revelaram comprometimento de 58% dos pulmões, que os médicos começaram a tratar a infecção respiratória. 

“Na época, os exames levavam uma semana para ficar prontos, mas a doutora Christiane Kobal e os médicos do Anis Rassi estavam convictos de que era Covid-19”, conta o secretário. Naquela data, apenas Joel Sant’Anna e dois médicos do interior de Goiás ocupavam os leitos do hospital destinados aos pacientes de Covid. 

Após 15 dias de tratamento, Joel Sant’Anna voltou para casa. Ele relata que, no condomínio onde mora, o pânico e o preconceito foram seus maiores problemas. Mesmo curado, não transmitindo mais o vírus, seus vizinhos divulgaram seu nome e imagem em redes sociais. “Eles relatavam onde eu ia: na academia, nas ruas em que eu andava, e tinham muito medo de pegar a doença. É o medo do desconhecido. Na época em que eu estive internado, minha esposa teve a forma leve da doença e precisou ficar isolada em casa, mas ninguém era autorizado a ajudá-la ou fazer entregas em casa. Eu atribuo isso à ignorância inicial; hoje em dia as pessoas já sabem que essa não é a melhor forma de lidar com os infectados.”

Joel Sant’Anna foi o primeiro participante do estudo coordenado por Christiane Kobal com o tratamento de plasma convalescente, que envolve a doação de anticorpos no plasma dos curados para aqueles que estão com a doença. Desde então, ele contraiu a variante ômicron, mas afirma que, tendo se vacinado com três doses, seus sintomas foram muito leves.