A metáfora da guerra em tempos de pandemia
19 abril 2020 às 00h01
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O que se tem visto, até então, é que a maior parte dos governos adotou a metáfora da guerra, ou seja, aquela da sobrevivência em detrimento dos demais estados
Matheus Pfrimer*
Especial para o Jornal Opção
Em 1987, já no fim da Guerra Fria, o então presidente estadunidense Ronald Reagan fez um
conhecido discurso à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Naquela ocasião, por meio de questionamentos, o ex-presidente estadunidense refletia sobre a hipótese de nações e culturas do mundo se unirem em um esforço comum a fim de viver em paz e evitar a guerra. Em uma das passagens mais emblemáticas deste discurso, Reagan dizia que diante de uma ameaça alienígena, nossas diferenças iriam rapidamente desaparecer. Mais adiante, indagou em tom pretensamente universalista: “Já não existe uma força alienígena entre nós? O que poderia ser mais estranho às aspirações universais de nossos povos do que a guerra e a ameaça de guerra?”. O que chamou atenção na retórica de Reagan foi o emprego da metáfora da guerra em um contexto claramente de resfriamento das tensões geopolíticas.
Igualmente, a atual pandemia de Covid-19 representa uma profunda crise nas relações
internacionais, tal como “a ameaça alienígena” do ex-presidente Reagan. Se por um lado, a
pandemia não é de outro mundo mas sim deste – consequência do capitalismo e da globalização -, de outro, ela tampouco representa um cenário de guerra, pois trata-se de uma crise de saúde pública. Neste contexto, poderíamos reformular sua pergunta indagando: o que poderia ser mais estranho às aspirações de nossos povos do que a pandemia? – O emprego da metáfora da guerra para um assunto de saúde pública. Diante da pandemia de Covid-19, as diferenças entre as nações mais do que rapidamente se aguçaram.
De forma geral, os governos nacionais interpretaram a pandemia de Covid-19 por meio de
três metáforas: a da guerra, a da competição e a da cooperação. O que se tem visto, até então, é que a maior parte dos governos adotou a metáfora da guerra, ou seja, aquela da sobrevivência em detrimento dos demais estados. Um grupo menor interpretou a pandemia por meio da metáfora da competição, isto é, a partir da lógica do livre mercado. E outro grupo reduzido adotou a perspectiva da cooperação no enfrentamento da pandemia. Em síntese, a metáfora da guerra tem prevalecido no cenário internacional.
Os governos que adotaram a metáfora da guerra são uma grande maioria. Por exemplo,
tanto o governo estadunidense quanto o brasileiro construíram a percepção que diante da pandemia a potencial ameaça seriam os demais países. Criou-se o discurso de uma ameaça externa ao território nacional. Tanto o presidente Donad Trump quanto o presidente Jair Bolsonaro chamaram o vírus do Covid-19 de “vírus chinês”, apontando a China como responsável pela crise mundial. No Brasil, diversas autoridades mencionaram termos como “economia de guerra” ou “inimigo invisível”. Apoiados no discurso da soberania nacional e do fechamento total das fronteiras, os Estados Unidos, a França e a Croácia apreenderam em seus aeroportos carregamentos de equipamentos de proteção destinados a outros estados, demonstrando que a retórica da guerra vem acompanhada de suas práticas.
Um segundo grupo de governos nacionais adotou a metáfora da competição externa
regulada pela lógica do livre mercado em detrimento das liberdades individuais e da democracia. Embora a maior parte dos países esteja vislumbrando a pandemia como ameaça às suas economias nacionais e ao capitalismo, nem todos adotaram a metáfora da guerra. Os exemplos mais simbólicos desta perspectiva são a China e a Coréia do Sul, que adotaram medidas internas drásticas a fim de logo conter a expansão da pandemia em sua população e assim poder novamente alavancar a economia. Construíram a visão do “inimigo interno”, o que implicou na lógica de restrição de direitos individuais. Nesta perspectiva, a crise da pandemia também representou “oportunidades de negócio”, ainda mais para a China, maior produtor de equipamentos hospitalares do mundo. Controlada a pandemia em seu território, passou a barganhar os insumos hospitalares para os demais países: quem pagou mais levou a oferta. Esse foi o caso dos equipamentos hospitalares inicialmente comprados pelo Brasil, mas posteriormente arrematados pelos Estados Unidos por um preço maior.
Por último, há um grupo reduzido de governos que adotou medidas na maior parte das vezes
sustentadas na lógica da cooperação. Nesta perspectiva, a pandemia mais do que uma guerra é uma crise de saúde pública. Isso implica em considerar os demais países como possíveis parceiros na solução da crise da pandemia. Um caso significativo foi a iniciativa do governo português de acolher todos os migrantes ilegais em seu território para que tivessem acesso à rede de saúde pública. Outro caso não menos simbólico foi a iniciativa da Alemanha de transportar pacientes italianos hospitalizados em Bergamo para hospitais alemães a fim de aliviar o sistema de saúde público da cidade italiana.
A pandemia deixou evidente que em momentos de crise os estados tendem a vislumbrar o
cenário internacional muito mais pela perspectiva da guerra e da competição do que pela
cooperação. Não por acaso, desde o início da pandemia a Organização Mundial da Saúde vem
advertindo que as ações para o enfrentamento da pandemia precisavam de maior cooperação
internacional. Ao contrário disto, os Estados Unidos anunciaram na terça-feira, 14, a suspensão do financiamento à Organização Mundial de Saúde para o enfrentamento da pandemia. Passados mais de 30 anos do discurso do ex-presidente Reagan, percebe-se a existência de uma força alienígena coexistindo entre nós: o sentimento de estranhamento entre as nações. Governantes de nacionalidades diferentes consideram-se mais ameaçadores do que o enfrentamento da pandemia. O ex-presidente estadunidense estava errado.
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*Matheus Pfrimer é mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Liège (ULg), doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Goiás (UFG)