A ex-Presidência é um despir-se de grandezas; é um voltar a si, um diminuir de semideus à estatura humana, devidamente enquadrada. Deixará de ser notícia, como se uma borracha invisível conspirasse contra sua onipresença sufocante

Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva: nada além do Olimpo | Fotos: Renato Araújo e Agência Brasil
Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva: nada além do Olimpo | Fotos: Renato Araújo e Agência Brasil

José Carlos Guimarães
Especial para o Jornal Opção

Haverá situação mais reveladora do que a de um ex-presidente caminhando sozinho por uma calçada, sem ajudantes-de-ordens, guarda-costas, carro oficial e — acreditem — absolutamente vulnerável? Existirá visão mais incongruente, e até desoladora? Fernando Henrique Cardoso relatou ter vivido cenas parecidas com essa. Numa delas, surpreendeu uma moradora do Edifício Chopin, no Rio de Janeiro, partilhando o elevador social como inquilino qualquer. E quê dizer de Lula acenando do seu apartamento de São Bernardo? No dia seguinte à entrega do cargo, o petista apareceu despido da indumentária religiosa. Substituiu o terno e a gravata litúrgicos por uma ordinária camiseta de regata. Normalíssimo, não víssemos o registro por um ângulo inusitado: aquele que converte o sacerdote em fiel. Definitivamente: a vida comum é impiedosa com o conceito e a imagem dos ex-presidentes. Soa degradante. Desmistifi­ca-os.

Como esses personagens reagirão psicologicamente ao fato (ou fardo) de ser ex-presidentes? Dependerá sempre do grau de narcisismo. Mas, para quem esquentou a poltrona do principal gabinete do Brasil, o dia seguinte deve ser um tanto alucinante; os nervos e os sentidos ainda não terão desacelerado em sintonia com os ponteiros da história. Aspirar a quê mais? Haverá com certeza uma pontinha de frustração com que lidar, daí por diante: nenhum cargo público é tão grande, tão visível, tão disputado. Ex-prefeito e ex-governador estão no meio da escalada política e podem ambicionar cargos mais importantes: amiúde, o primeiro sonha em ser governador, o outro exatamente em ser presidente. Não lhes incomoda a perspectiva futura, portanto. Mas — e ex-presidente? Vez que não há nada além do Olimpo, tudo o que rolar a partir desse nível é ladeira abaixo. Que tal ser deputado federal ou — para ser mais solene — senador? É voltar a ser um entre muitos, quando se foi único; é depender de vários, quando se teve a ilusão de depender apenas de si próprio.

Sem tais escrúpulos, Sarney e Collor regressaram à vida pública via senado. Mas Sarney nunca mais aceitou ser menos que isto: presidente, a qualquer custo. Uma vez Zeus, nunca mais contentou em ser do segundo escalão. E, sejamos francos: Fernando Collor de Mello é um presidente que o Brasil (prestai atenção ao verbo) teve. O senador que é vige à sombra espectral do ex.

É isso: para quem manda no Planalto, o futuro será sempre o passado. O Congresso equivale a descer de patamar, mesmo que a hierarquia entre os poderes seja uma vertigem característica. É uma diminuição em relação à, como direi?, à exclusividade do Exe­cu­tivo. FHC, sobranceiro, preferiu resguardar-se: a vida parlamentar já não combinaria com a dignidade de quem foi “princeps” (bem entendido: “o primeiro entre os homens”). E Lula? Toparia uma eleição garantidíssima para o legislativo federal? Improvável: sua vocação suprema é a caneta. Não suportaria mais ser voto vencido, e eventualmente ignorado, numa assembleia de Tiriricas muito piores do que o original. De forma que a sensação de fobia não deve ser estranha aos ex-presidentes: como sair dessa?

Que opções políticas lhes restam? Embaixada mais parece prêmio de consolação; pior, uma maneira cruel de desaparecer com eles. Itamar Franco ter servido em Portugal significou exatamente isto: uma carta fora do baralho. Para Lula, tal experiência seria o exílio que não conheceu, de muitos de sua geração. A alternativa mais cruel, a mais irônica, é aquela do começo: cuidar da própria vida, voltar a ser humano e se sentar no sofá de casa, já não mais a planície sem fim do Palácio da Alvorada. Dali, do seu sofá, o ex poderia ter uma experiência deprimente: enxergar-se como um dos 190 milhões de brasileiros; um anônimo telespectador e não mais o sujeito (supõe-se) fundamental da história. Deve ser mortificante estar do lado de cá, do tubo, e assistir tudo ser decidido do outro lado, sob a luz distinta dos holofotes. Principalmente depois de ter tido uma longa existência virtual.

Quem nunca viu um presidente ao vivo duvidaria de sua existência física. É um ser incorpóreo, de outro mundo. Daí a mística do autógrafo: é a prova tátil de que existe o tal ser, a meio caminho entre a terra e o céu.

cult6Ser ex-presidente é, mediocremente, cruzar a fronteira para a vida privada — e tão grande é o espaço público, e tão pequeno costuma ser o oposto, com suas ninharias e preocupações ordinárias! A ex-presidência é um despir-se de grandezas; é um voltar a si, um diminuir de semideus à estatura humana, devidamente enquadrada. Um ex se descobre velho, e não custa entender que é apenas um ser finito, haja vista que cumpriu sua “missão”. Seu nome, aos poucos, deixa de contaminar os artigos da imprensa como se fossem vírus dispersos em todas as páginas escritas. Suas fotos rareiam. Deixará de ser notícia, como se uma borracha invisível conspirasse contra sua onipresença sufocante. Desaparece, aos poucos, contra a sua vontade, para só retornar no antigo posto em décadas, já imortalizado pelos livros de história. A condição de ex tem, quer queira quer não, ares de aposentadoria. É a situação existencial do político depois do limite, a curva descendente da parábola. Com efeito: ex-presidente é aquela pessoa que olha a política do altíssimo, sem estar mais no topo.

Nas democracias, a chefia de Estado tem prazo para terminar. É um aprendizado, duro mas indispensável à impessoalidade das instituições. Nessa hora terrível, o sujeito de dá conta de que acima de si — um simples homem, uma simples mulher —, deve pairar um sistema, abstrato, complexo e mais importante do que ele(a). De forma que, vencido aquele prazo, há de engolir seco, passar a faixa e tornar-se coadjuvante. Populari­dade? Carisma? Nada disso importa mais na hora fatídica de despedir-se do poder. Chato, não? É a democracia, cobrando a fatura.

José Carlos Guimarães é historiador.