Varlam Chalámov, o trotskista, em Kolimá: o inferno stalinista
25 abril 2021 às 00h00
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Chalámov desenha o indivíduo absoluto. O ser desnudo em face da existência. É uma literatura que deixa ver o que é o homem, sua capacidade de resistir e de desagregar-se
Carlos Russo Jr.
“Sim, é duro ler tudo o que está ali. Mas é necessário, visto que os campos de concentração e extermínio não pertencem apenas ao passado.”
Sim, campos de concentração, de trabalho forçado e extermínio não foram somente os nazistas e os stalinistas. Estes foram, sim, sua expressão maior e paroxística.
No entanto, também os encontramos nos porões da ditadura civil-militar brasileira, nos campos de extermínio da marinha argentina, nos estádios de Pinochet, nos campos de trabalho forçado da China maoísta à época da dita Revolução Cultural.
E em que ameaçam se tornar nossas imensas favelas do século 21, na devastação socioeconômica pós-Covid senão em novos campos de concentração e extermínio policial?
Na Sibéria da Rússia — União Soviética entre 1917 e 1991 — existe uma região maldita, percorrida por uma estrada maltratada de 2 mil quilômetros construída sobre milhares de cadáveres de prisioneiros do Gulag e por isso conhecida como Estrada dos Ossos. Kolimá, um rio que empresta o nome à região, entre 1930 e 1956 recebeu mais de 2 milhões de presos políticos e comuns que alimentaram com seu trabalho e vidas a estrutura criminosa de 160 campos de trabalho e extermínio.
Irina P. Sirotínskaia, amiga dos últimos anos de vida de Varlam Chalámov (1907-1982), faz o seguinte registro sobre o conjunto de sua obra literária: “Desumana e horripilante é a verdade nos campos de Kolimá. Ainda mais horripilante é a verdade sobre o homem que se revela naquelas condições extremas. Com que facilidade o homem renuncia à sutil película da civilização, ‘com que facilidade o homem se esquece de ser um homem’”.
O escritor e químico italiano Primo Levi (1919-1987), judeu sobrevivente do campo nazista de Auschwitz, expressa, em sua essência, o mesmo pensamento em “É Isso Um Homem?” (Rocco, 256 páginas, tradução de Luigi Del Re). Ou em como transformar em bestas famintas e enlouquecidas os prisioneiros, e em máquinas insensíveis da morte os carcereiros?
O jornalista e escritor italiano Roberto Saviano, autor de livros que denunciam a atuação do crime organizado pelo mundo, escreveu sobre os “Contos de Kolimá”: “Chalámov narra um inferno que os leitores não conhecem tão bem quanto o de Auschwitz. E do qual nem sequer suspeitam. Em torno das atrocidades do comunismo soviético dos gulags, o silêncio calou por muito tempo. Sua existência no imaginário de quase todos é nula”.
Para Roberto Saviano — jurado de morte pela máfia napolitana —, mergulhar nos escritos do escritor russo “é uma leitura que exige força para continuar, página após página, uma escalada rumo à espoliação da alma. Numa dimensão universal, um mergulho ao fundo da dimensão humana. Ao cúmulo do sofrimento, para além do sedimento da corrupção”.
Chalámov desenha o indivíduo absoluto. O ser desnudo em face da existência. É uma literatura que deixa ver o que é o homem, sua capacidade de resistir e de desagregar-se.
A 40 graus abaixo de zero, cercado por seres cujo único objetivo é tomar o seu pão e que a cada manhã esperam encontrá-lo morto para pegar suas roupas. “Mesmo ali, entretanto, um homem ainda pode tentar ser homem.”
Entre o final dos anos 1930 e o pós-guerra, milhões de pessoas foram deportadas e morreram nos campos de trabalhos forçados soviéticos. Em Kolimá, região desolada da Sibéria, “onde um cuspe congela no ar antes de tocar a terra”, localizavam-se alguns desses campos, e num deles, o escritor russo Varlam Chalámov cumpriu pena por quase duas décadas, cavando buracos, abrindo estradas e quebrando pedras. Ao final desse período, retorna a Moscou e já no ano seguinte começa a escrever sua obra-prima — os “Contos de Kolimá” (Editora 34, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich. Trata-se do primeiro volume; no total, a edição brasileira contém seis volumes, com tradutores variados, como Lucas Simone, Nivaldo dos Santos, Francisco de Araújo, Daniela Mountian, Moissei Mountian e Marina Tenório).
Chalámov, condenado como “contrarrevolucionário trotskista”, então com 30 anos, foi encarcerado, num período que se estendeu de 1937 a 1951. Esta experiência não foi, porém, seu primeiro contato com o autoritarismo de Stálin (1878-1953).
Prestes a completar 22 anos e estudante de Direito, Varlam foi surpreendido numa gráfica clandestina que rodaria panfletos com o “Testamento de Lênin”, a última carta em que o líder recém-morto recomendava a redução de poderes dados ao “rude Stálin”, escrito pouco antes de sua morte. “Testamento” que o Politburo escondeu do restante do Partido Comunista da União Soviética.
Tachado de “trotskista e elemento socialmente perigoso” (Stálin considerava Trotski como seu principal inimigo), ele foi preso pela primeira vez e passou três anos em campo de trabalho forçado na região dos Urais.
Mas foi Kolimá, seu segundo campo de trabalhos forçados, que o marcariam por toda a vida.
Somente a morte de Stálin, em março de 1953, mudou o jogo para os prisioneiros dos campos: mortos foram reabilitados, muitos vivos foram libertados.
Chalámov pôde deixar Kolimá em novembro de 1953. Sua mulher, Galina Ignatievna, e a filha Lena o esperaram em Moscou desde 1937. Mas Galina exigiu que ele não revelasse nada sobre sua experiência em Kolimá para a filha.
Lena fora criada no espírito do tempo: a Pátria e o ódio dos ditos “inimigos do povo”. E o dito trotskista Chalámov fora considerado “inimigo do povo soviético”.
Galina insiste para que Chalámov esqueça tudo e retorne a uma vida de cidadão soviético “normal”.
Termina, então, a relação que resistira a 16 anos de separação.
A vida, agora, para Chalámov não significava nada além de suas obras de memória e de transcrição do vivido. No relato intitulado “O Apóstolo Paulo”, descreve sua própria desagregação familiar.
“O campo de trabalhos forçados é uma escola negativa para qualquer um, do primeiro ao último dia. O homem — seja ele chefe ou prisioneiro — não deve vê-lo. Mas, se o vê, deve dizer a verdade, por mais terrível que seja.”
Na introdução de “Contos de Kolimá”, o próprio Chalámov diz: “Por que escrevo contos? Eu não acredito na literatura. Não acredito em sua capacidade de corrigir o homem. A experiência da literatura humanista russa resultou, diante dos meus olhos, nas sangrentas execuções do século 20”.
“Eu não acredito na possibilidade de evitar um fato, de anular a sua repetição. A história se repete. E qualquer fuzilamento de 1937 pode ser repetido.”
“Por que então escrevo? Escrevo para que alguém, apoiando-se em minha prosa, alheia a qualquer mentira, possa contar sua própria vida, num outro plano. Afinal, um homem tem de fazer algo.”
“Contos de Kolimá” são relatos em que Chalámov relata histórias que viveu ou presenciou no campo de trabalhos forçados. Os contos ligam-se uns aos outros, as mesmas personagens aparecem em contos diferentes, de modo que eles irão constituir uma unidade temática, que ocupará mais de mil páginas (a Editora 34 publicou todos os volumes, com traduções diretas do russo).
Mas não são contos no sentido tradicional do termo, já que são histórias reais e não ficção.
As personagens são pessoas que conviveram com o autor. As histórias são verdadeiras pequenas obras-primas que relatam o horror stalinista: uma filha que denuncia o pai; marido, a mulher à polícia política. Denúncias de opiniões, de “leituras não recomendáveis”, até mesmo brincadeiras entre amigos… A tortura que destrói e mutila.
Enfim, um tempo de terror absoluto.
O que importa para os presos é tentar sobreviver num inverno de 55 graus negativos, “em que até o cuspe congela”. Roupas de mortos são roubadas ou disputadas em jogos de baralho. Um casaco puído tem muito valor e se mata para consegui-lo.
O frio faz os humanos perderem o que têm de humano, quer sejam presos ou carcereiros. “Acham que até o cérebro congela.”
Presos mentem que são carpinteiros apenas para poderem dormir uma noite num lugar mais quente. Quando descobrirem que não entendem nada de carpintaria serão castigados, mas não importa. Terão dormido uma noite.
O trabalho é de 16 horas por dia e são mal alimentados com uma sopa rala e fria.
Enfim, as histórias são chocantes. O ser humano, reduzido a nada, um mísero animal que rouba e mata para simplesmente seguir respirando.
A leitura dos livros de Chalámov nos leva a parodiar o escritor anglo-polonês Joseph Conrad em “O Coração das Trevas”, e com ele podemos sem dúvida repetir: “O Horror, O Horror”.
Carlos Russo Jr. é crítico literário.
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