Uma dança do subsolo: “A Sagração” de Pina Bausch
15 março 2017 às 15h10
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A dança do subsolo de Bausch nos traz à mente o Inferno de Dante. Suas repetições infinitas lembram várias cenas da Comédia, tal qual a que se passa no quarto círculo do Inferno: onde os avaros e os pródigos estão divididos em dois grupos opostos e empurrando grandes pesos. Obrigados a percorrer o círculo em movimento contrário um do outro, os dois grupos se chocam eternamente e gritam: “Por que poupas? Por que dilapidas?”
Paulo Guicheney
Especial para o Jornal Opção
Pina Bausch e Igor Stravinsky não se conheceram. Pelo menos não no sentido mais comum de “se conhecer”. A “Sagração da Primavera”, a obra mais célebre do compositor russo, foi composta em 1913. Pina nasceu em 1940, e sua coreografia da “Sagração” em 1975. Stravinsky morreu em 1971.
Teria o compositor aprovado o trabalho de Bausch? É óbvio que não temos resposta para isso. E qual seria a importância? Nenhuma. Assim como a obra de Bausch, e a obra de qualquer artista que mereça ter seu nome citado, a música de Stravinsky permite várias interpretações, várias leituras. É óbvio também que não qualquer leitura. Mais de 150 coreografias foram criadas desde Nijinsky, e é interessante saber que o próprio Stravinsky não aprovou a primeira versão: “Nijinsky (…) desconhecia o alfabeto musical. Ele jamais compreendeu metros musicais e não tinha uma percepção muito correta de andamento. Pode-se imaginar então o caos rítmico que foi Le Sacre du Printemps (…). E Nijinsky também não fez nenhuma tentativa para compreender minhas próprias ideias coreográficas para Le Sacre. Ele acreditava que a coreografia devia reenfatizar o pulso e o padrão musical através de coordenação constante. Como resultado, isto restringia a dança à duplicação da música e fazia dela uma imitação.”
Se a crítica de Stravinsky é válida ou não, temos objeto para infindáveis discussões. Novamente: qual a importância de seu consentimento? Provavelmente, nenhuma. Mais produtivo é pensar a leitura que Bausch fez de sua peça. Uma leitura separada por mais de 60 anos.
Arrisquemos uma fórmula para a coreografia de Bausch: Jovem dança até a morte. O Outro olha e goza, impassível. Não seria uma fórmula para a nossa própria existência? Não poderíamos nos colocar nesse lugar? Desagradável, sim. Mas um lugar provável.
Da música de Stravinsky, desta, como definiu Alex Ross, “música do corpo, ao invés da mente” Bausch extraiu o máximo. Somos todo o tempo jogados de um lado a outro, ofegantes, sujos. Parodiando Schoenberg poderíamos dizer que a: “Dança expressa tudo o que habita em nós…” A dança em Pina Bausch expressa tudo o que de pior nos habita.
Uma dança do subsolo.
Uma possível semelhança com a coreografia de Nijinsky – e aqui vemos um elemento tradicional na poética de Bausch – é que a música também estrutura o todo. Ela é a responsável pela forma. Tal não acontece em “Café Müller” – aqui a música está destituída de seu poder de estruturar o indizível. A música de Purcell em “Café Müller” apenas evoca, machuca. É mais uma voz na polifonia do desespero e do isolamento. Uma personagem acusmática, mas também feminina, na voz angustiada de Dido.
A dança do subsolo de Bausch nos traz à mente o Inferno de Dante. Suas repetições infinitas lembram várias cenas da Comédia, tal qual a que se passa no quarto círculo do Inferno: onde os avaros e os pródigos estão divididos em dois grupos opostos e empurrando grandes pesos. Obrigados a percorrer o círculo em movimento contrário um do outro, os dois grupos se chocam eternamente e gritam: “Por que poupas”? “Por que dilapidas?”.
Perguntas sem resposta. Koans do desespero. Ou a própria técnica de pergunta-resposta, com a qual Bausch trabalhou desde 1978: 1) Copie o tique de alguém; 2) Faça algo do qual você se envergonhe; 3) Escreva seu nome com movimento; 4) O que você faria com um cadáver? 5) Mova sua parte favorita do corpo; 6) Como você se comporta quando perde alguma coisa?
Perguntas que geram Koans do corpo. Podemos novamente nos arriscar – ter com Pina Bausch é estar sempre no risco – e dizer que toda arte aspira à condição de Koan.
E somos forçados a lembrar Dante mais uma vez, quando na quarta vala do oitavo círculo do Inferno o poeta se comove com a pena dada aos adivinhos: com a cabeça torcida para as costas, impedidos de olhar para frente, eles estão eternamente, a condição do tempo no inferno, condenados a caminhar para trás. Podemos acrescentar uma pergunta ao questionário de Bausch: Como você caminharia se sua cabeça fosse torcida para trás?
Uma pergunta que evoca uma resposta do Inconsciente. “A arte pertence ao inconsciente! O artista deve expressar a si mesmo! Expressar a si mesmo diretamente! Não seu gosto, sua educação, inteligência, conhecimento ou habilidade”, diz Schoenberg em uma carta a Kandinsk. Poderia ter sido dito por Pina Bausch.
Não há salvação possível, sabemos disso. A vida, ou melhor dizendo, a morte não perdoa nem mesmo os atores, lembremos do recado de Bergman no “Sétimo Selo”. Mesmo a criação artística falha, no intuito de trazer a felicidade, quando é o corpo que sofre, nos ensina Freud: “(…) a suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real”.
Mas o que devemos fazer? Tudo falha. Em um momento ou outro tudo falha. É a condição da vida. “A vida torna tudo feio”, disse Strindberg. Um consolo é estar a par disso e não ser simplesmente uma vítima da fúria divina. Uma vítima do descaso divino. A obra de Bausch nos conduz por uma via desagradável onde todo tipo de promessa redentora esvanece. Assim, sua obra tem o poder de nos despertar. Poder que nasce da capacidade de, utilizando as palavras do psicanalista Jacques Alain Miller, “nos oferecer o próprio dejeto como objeto de arte”; da capacidade de “(…) estetizar o dejeto, idealizá-lo, ou, como dizemos em psicanálise, sublimá-lo”.
Nos palcos mais chiques do mundo sua mensagem é desagradável. A mensagem-peste que insistimos em recalque celebrar. A crítica do The New Yorker, Arlene Croce, desdenhosamente descreve em 1984 a estreia da turnê da “Sagração” nos EUA: “gordinhas… que não se parecem bailarinas.” E de maneira ainda mais sintomática, a partir da ideia de Belo completamente desprovido de qualquer dejeto: “ao suar os bailarinos se sujam, e o piso coberto de terra acrescenta um elemento de eca ao ‘Sacre’, que… fez a Brooklyn Academy… cheirar feito um estábulo”.
Outra crítica do The New Yorker, Joan Acocella, acrescenta: “me aborrecia seu desespero tão na moda a respeito de sua sociedade, quando seus espetáculos sobre o assunto eram generosamente financiados pela mesma sociedade que ela culpava.” Mas este é um preço que todo artista irá pagar, por mais radical que seja. É o jogo de azar em uma estranha economia da civilização que marginaliza, patrocina, estabelece, canoniza, extermina a obra de arte. Não nessa ordem e não serialmente.
Acocella continua: “Para mim sua visão era solipsista, até mesmo imoral, e o fato de que os artistas alemães ainda estavam de luto pelo papel de seu país na Segunda Guerra não me parecia uma desculpa suficiente. Primeiro os alemães mataram os judeus, e então nós deveríamos nos sentir mal por eles porque isto pesa em suas consciências? E uma culpa tão grande que eles têm que deslocá-la, atribuir à toda a humanidade os pecados dos anos 30 e 40 da Europa do norte?”
O que Acocella não percebe é que não é a culpa pelo Shoah que deve pertencer a todos os povos, mas a ideia de que o homem é fundamentalmente mau, ou que pelo menos, não é fundamentalmente bom. Ou de que se deve sempre esperar o pior do outro, ou que pelo menos, não se deve sempre esperar o melhor do outro. Esta é uma ideia paranóica, alguém poderia objetar. Sim, na medida em que, como diz Miller: “(…) a paranóia é consubstancial ao laço social, (…) é impossível ser alguém sem o apoio de uma paranóia”. É temerário acreditar no “‘Eu quero o seu bem’. É preciso pouca personalidade para que se possa botar fé nisso”, ainda nas palavras de Miller.
Primo Levi e Imre Kertész, para citar dois autores que sentiram na própria carne a instabilidade do “Eu quero seu bem”, demonstraram como a desgraça do Shoah é algo que pertence à toda a humanidade, ou seja, ele é um acontecimento de cunho universal, e não um fato restrito aos europeus do norte dos anos 30 e 40. Se esta percepção do abismo humano permeia a obra de Bausch então compreendemos o quão profunda era a visão que ela tinha de nossa existência.
“As dissonâncias que o espantam falam de sua própria condição e somente por isso lhe são insuportáveis”, podemos ainda opor Adorno, em um trecho de seu livro sobre Schoenberg e Stravinsky, às afirmações de Acocella.
Seremos ainda nos dias de hoje forçados a lembrar que os piores estados, os mais criminosos, do século XX foram justamente aqueles que proibiram, não apenas não patrocinaram, mas proibiram, exterminaram, os artistas que questionaram o statu quo destes mesmos estados?
Proibir o anormal, proibir o estranho é um convite à barbárie. Pina Bausch se encontra na contramão disso. O que ela faz é jogar em nossa cara os dejetos de nossa existência higienizada, conformada e banal. Os corpos retorcidos, perdidos, com “cheiro a estábulo”, condenados a movimentos repetitivos infernais falam de todos nós. São traços que nos constituem, a você e a mim. Não são um simples fruto da simples neurose de uma artista culpada alemã. Eles representam antes, o lugar desagradável que ocupamos no mundo.
“Eu amava dançar porque eu tinha pavor de falar. Quando eu estava me movimentando, eu podia sentir”, diz Pina Bausch. Mal sabia ela da força deste mover-se sem palavras.
REFERÊNCIAS
ACOCELLA, J. Pina Bausch’s zone of discomfort. Disponível em: http://www.newyorker.com/online/blogs/culture/2012/01/pina-bauschs-zone-of-discomfort.html Acesso em 19 abr 2013
ADORNO, T. W. A filosofia da nova música. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
DANTE ALIGHIERE. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 2009.
FORESMAN, R. “Pina” and paradox. Disponível em: http://www.newyorker.com/online/blogs/backissues/2012/02/pinas-paradoxes.html Acesso em 19 abr 2013.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LAWSON, V. Pina, Queen Of The Deep. Disponível em: http://www.ballet.co.uk/magazines/yr_02/feb02/interview_bausch.htm Acesso em 19 abr 2013.
MILLER, J.-A. A salvação pelos dejetos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
ROSS, A. The rest is noise. New York: Picador, 2008.
WHITE, E. W. Stravinsky. Porto Alegre: L&PM, 1991.
Paulo Guicheney é bacharel em música e mestre em composição pela Universidade Federal de Goiás (UFG)
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Confira, na íntegra, a coreografia para “A Sagração da Primavera”, criada por Pina Bausch, em 1975: