“A ficção, mesmo quando não narra um fato realmente ocorrido, de alguma forma parte da experiência com fatos reais, ainda que transmutados em arte”
Adelto Gonçalves
O poeta, tradutor, crítico e novelista português Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), nascido no Porto e licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade daquela cidade em 1933, foi professor no Liceu Rodrigues de Freitas até o momento em que foi afastado da carreira docente, por motivos políticos, em 1937. Perseguido pelos esbirros do Estado Novo (1933-1974) salazarista, foi preso diversas vezes, devido às suas opiniões políticas e dirigiu, sob anonimato, o semanário Mundo Literário, de 1936 a 1937.
Viria a exilar-se no Brasil em 1954, depois de ter sido diretor da revista literária coimbrã “Presença”, ao lado de José Régio (1901-1969) e João Gaspar Simões (1903-1987), após o afastamento em 1930 de Miguel Torga (1907-1995), Branquinho da Fonseca (1905-1974) e Edmundo de Bettencourt (1889-1973).
A revista viria a extinguir-se em 1940, tendo provavelmente contribuído para o seu encerramento as opções políticas de Casais Monteiro. Expulso do ensino, Casais Monteiro fixou-se em Lisboa, vivendo da literatura como autor, tradutor e editor. No Brasil, depois de atuar na Universidade da Bahia e outras instituições de ensino, transferiu-se em 1962 para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Araraquara-SP, que, mais tarde, viria a fazer parte da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Foi lá que teve como alunas aquelas que seriam as futuras professoras Magaly Trindade Gonçalves (1941-2015), Zélia Thomaz de Aquino (1941-2014) e Zina C. Bellodi (1941). Da autoria dessas professoras é Memorialística: História, Memória e Ficção (Araraquara-Jaboticabal-SP, editora Maria de Lourdes Brandel, 2012), obra indispensável para o estudioso que busca um panorama da literatura brasileira da segunda metade do século XX e do início do XXI, ainda que, como sempre acontece neste tipo de trabalho, alguns autores importantes tenham ficado de fora da análise das autoras.
O livro procura fazer – e o faz muito bem – um levantamento despretensioso de obras e autores brasileiros que trataram de ficcionalizar a História, muitos deles partindo do exercício da memorialística. Neste caso, estão obras como O baú de ossos, de Pedro Nava (1903-1984), Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa (1908-1967), Largo do desterro, de Josué Montello (1917-2006), Invenção do desenho, de Alberto da Costa e Silva (1931), Veia bailarina, de Ignácio de Loyola Brandão (1936), O filho eterno, de Cristóvão Tezza (1952), Dois irmãos, de Milton Hatoum (1952), e O Vi&uacut e;vo, de Ronaldo Costa Fernandes (1952), autores contemporâneos, ao lado de obras mais antigas, como Minha formação, de Joaquim Nabuco (1849-1910), Memórias, de Humberto de Campos (1886-1934), e Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908), entre outras.

Magaly Trindade Gonçalves, Zélia Thomaz de Aquino e Zina C. Bellodi, em 1994 | Foto: Divulgação
Para tanto, as autoras tratam desde logo de estabelecer no primeiro capítulo as diferenças entre história, memória e ficção. E lembram que de história a acepção que interessa é a de enredo, trama. Já memória refere-se à criação a partir de um relato de experiências pessoais, de que deriva o gênero chamado de memorialística, enquanto ficção “é um termo que envolve todo o relato que não esteja preso a um fato histórico ou biográfico”. Ou como observam no artigo dedicado ao romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, “a ficção, mesmo quando n&a tilde;o narra um fato realmente ocorrido (o que é muito comum), de alguma forma parte da experiência com fatos reais, ainda que transmutados em arte” (p.63).
Ressaltam ainda que as nossas lembranças nem sempre (quase nunca) correspondem à exata realidade do fato passado, citando o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), prêmio Nobel de Literatura de 1927, que, por sua vez, serviu de base para a psicóloga brasileira Ecléa Bosi (1936-2017) escrever “Memória e sociedade — Lembranças de velhos “(São Paulo, T.A. Queiroz/Edusp, 1987) em que se lê que há “oposição entre o perceber e o lembrar”, ou seja, “entre matéria e memória”. E assinalam que foi no século XX que a produção de memórias mais se acentuou na mistura declarada com a ficção e, às vezes, com a História, destacando que a grande obra dessa época nesse sentido é À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust (1871-1922).
Um exemplo perfeito disso é Invenção do desenho — ficções da memória, de Alberto da Costa e Silva, em que o autor mistura “uma realidade pessoalmente vivenciada” em sua vida de diplomata com “uma imagem rica e sugestiva de momentos fundamentais na História do Brasil e de Portugal”. E recorda encontros com grandes figuras literárias e figurões da política, como os ex-presidentes Jânio Quadros (1917-1992) e Juscelino Kubitschek (1902-1976).
Outro exemplo que se ajusta à perfeição ao tema do livro é o já citado romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, que constitui uma narrativa memorialística que, segundo as autoras, representa a angústia pelo sentido, aquele desejo, nunca inteiramente satisfeito, de “atar as duas pontas” para compreender as direções tomadas. “Isso está exatamente na linha onde se inscreve o estudo histórico, visto como uma tentativa de compreender causas e consequências na vida das sociedades. Trata-se de uma tentativa, e nem sempre a veracidade é garantida”, observam, lembrando como exemplo que o fenômeno do nazismo alemão (1 933-1945) é continuamente discutido, mas nada garante que tenha sido inteiramente entendido até hoje.
Nascida de Araraquara, Magaly Trindade Gonçalves, professora titular aposentada da Unesp de Araraquara, era formada em Letras Anglo-germânicas e doutora em Teoria da Literatura. Sua tese de doutoramento na Unesp em 1974 teve por título “D. H. Lawrence – estrutura e símbolo”. Já seu trabalho de livre-docência em 1986 recebeu o título “A visão do herói trágico no teatro do século XX”. Foi aluna de Adolfo Casais Monteiro na graduação e fez com ele o curso de especialização em Teoria da Literatura em 1964-1966.
Desenvolveu intensa atividade acadêmica, tendo publicado várias obras nas áreas de literatura e do teatro, além de artigos em periódicos universitários. Fez um curso sobre William Shakespeare (1554-1616), em Stratford-upon-Avon, terra do poeta, dramaturgo e ator inglês, de que resultou o volume Teatro Ocidental – reflexões. Publicou ainda A visão do real em Virgínia Woolf: algumas reflexões (Unesp, 1993). Participou de várias bancas de concursos acadêmicos.
Nascida em 1941 em Araraquara, Zélia Thomaz de Aquino foi professora da rede estadual de ensino fundamental e médio, pesquisadora, ensaísta e advogada. Formada em Letras Anglo-germânicas em 1963, em Língua Francesa na Faculdade Barão de Mauá, de Ribeirão Preto, e em Direito na Federação das Faculdades Isoladas de Araraquara (Fefiara), atual Universidade de Araraquara (Uniara). Foi colaboradora na publicação Cadernos de Teoria e Crítica Literária, periódico criado por Casais Monteiro, que teve 20 números entre 1972 e 1993, todos feitos com a participação de Magaly e direção de Zina.
Nascida em 1941 em Córrego Rico, distrito de Jaboticabal, Zina Casteleti Bellodi professora titular aposentada da Unesp, de Araraquara, é formada em Letras Anglo-germânicas na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, atual Faculdade de Ciências e Letras, da Unesp. Desenvolveu estudos nas áreas de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Portuguesa, além de Literatura Infanto-juvenil. Participou de bancas de concursos acadêmicos e publicou artigos em periódicos universitários.
Publicou “Função e forma do tradicional em Mário de Sá Carneiro”, sua tese de doutoramento, em Cadernos de Teoria e Crítica Literária (Araraquara, Unesp, 1975); “Florbela Espanca – Discurso do outro e imagem de si”, sua tese de livre-docência, em Cadernos de Teoria e Crítica Literária (Araraquara, Unesp, 1992); “Florbela Espanca – Discurso do outro e imagem de si” (texto condensado) em Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, vol. XXXIII (Lisboa-Paris, 1994); Melhores poemas de Florbela Espanca (São Paulo, Global Editora, 2005); A construção de um sonho – Fazenda San ta Cruz (Jaboticabal, Gráfica Multipress, 2011); D. Maria Luíza Carrão Jakovac (Jaboticabal, Gráfica Multipress, 2011); e A Casa do Coco (Jaboticabal, Gráfica Multipress, 2010), entre outras obras.
Magaly, Zélia e Zina são ainda co-autoras, entre outros, dos seguintes livros: Antologia de antologias – 101 poetas brasileiros “revisitados” (São Paulo, Musa, 1995; 1997); Antologia escolar de Literatura Brasileira – poesia e prosa (São Paulo, Musa, 1998); Estudos de Literatura Infantil – teoria e prática (Jaboticabal, Funep, 2000), A figuração de Tiradentes na ficção brasileira (Jaboticabal, Funep, 2002) e Antologia comentada de Literatura Brasileira – poesia e prosa (Petrópolis, Editora Vozes, 2006).
Serviço
“Memorialística História, Memória, Ficção”, de Magaly Trindade Gonçalves, Zélia Thomaz de Aquino e Zina C. Bellodi, com prefácio de Alexei Bueno. Araraquara-Jaboticabal: editora Maria de Lourdes Brandel, 162 páginas, 2012.
Adelto Gonçalves, doutor em Literatura, é crítico literário.
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