A tragédia pedagógica da Base Nacional Curricular Comum

04 agosto 2017 às 08h24

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A BNCC é, pois, uma camisa de força que haverá de empobrecer a Nação, porque ostraciza inúmeras perspectivas humanas
Jean-Marie Lambert
Especial para o Jornal Opção
Não há campo de batalha mais importante, na guerra ideológica, que a escola. A infância, a adolescência e a juventude são momentos cruciais numa estruturação mental fadada a acompanhar o indivíduo e desenhar sua relação com a realidade para o resto da vida. Logo, o aparato de construção e transmissão do saber é tradicionalmente alvo predileto de todo grupo com vocação a definir os destinos da sociedade. E não é de se estranhar a luta ferrenha travada por todos contra todos para ocupar a máquina educacional.
Está em jogo a formação dos conceitos de certo e errado, de bem e de mal e tantos outros aparentados a delinear o senso de pudor, os critérios de normalidade, a matriz moral, o reflexo ético e a noção de justiça. O amadurecimento e as circunstâncias levam à revisão de muitas certezas, mas os primeiros anos impregnam a alma para sempre e marcam a personalidade até a morte. Por isso, a vertente “politicamente correta” quer as crianças e os jovens em idade receptiva e maleável, do jardim até a formatura universitária. Naturalmente, colide com quem tem aspiração concorrente. O universo religioso, com certeza. Também grupos representativos da moral laica. Mas, muito mais sutilmente, atropela os pais e as famílias cuja resistência tenta vencer por cansaço com a ajuda da lei e do Estado.

“Cidadão Coca-Cola”
A batalha pelo controle da sala de aula vem de longe e oferece matéria para encher uma biblioteca inteira. Na contingência de ter que contar tudo em poucas linhas, vale reduzi-la a um choque titânico entre o mundo judeu-cristão e uma linha marxista chamada de cultural justamente para traduzir a intenção de reestruturar a sociedade por indução de formas novas de pensar antes que pela força das armas.
Na mais profunda e irredutível dimensão do conceito, o “marxismo cultural” projeta a ideia de luta de classes à integralidade das relações humanas. Configura assim uma ideologia essencialmente conflitual que substitui as noções tradicionais de complementaridade ou reciprocidade por uma vaga incompatibilidade de interesses a opor mulher a homem, pai a filho, negro a branco, homo a hétero, pobre a rico, crente a ateu, esquerda a direita ou finalmente qualquer um a qualquer coisa, desde que a imaginação consiga vislumbrar a menor possibilidade de antagonismo.
Do ponto de vista teórico, a visão em questão acha sustentação na Escola de Frankfurt e no desconstrutivismo, sistematizado pela intelectualidade francesa na década de 1960. Sob o ângulo operacional, conta com um poderoso eixo de transmissão internacional na forma de um projeto psicopedagógico da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) a forçar a entrada nos sistemas educacionais do mundo desde o final do século passado.
Em resumo, o substrato estratégico dos métodos de ensino – herdado do educador americano John Dewey e da doutrina behaviorista skinneriana – transforma a sala de aula em laboratório de psicologia. Trabalha a emoção, o afeto, a intuição e o reflexo em detrimento do intelecto. Por exposição sistemática a determinadas imagens e ideias, visa estimular atitudes e crenças em detrimento do raciocínio e do conhecimento. O objetivo, na realidade, é construir um modelo antropológico global. Uma espécie de “cidadão Coca-Cola”, idêntico nos Estados Unidos, na Índia, na França ou no Brasil e movido por um pacote único de relativismo moral, feminismo radical, gayismo e materialismo filosófico com tonalidades perceptíveis de anti-ocidentalismo.
No Brasil, o processo de internalização passou por vários textos normativos hoje aperfeiçoados e sintetizados na forma da Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Tem equivalente nos Estados Unidos sob o nome de “Common Core”, é conhecido nos países francófonos como “Tronc Commun” e aparece em vários idiomas sob etiquetas distintas. Contrariamente à pretensão dos seus defensores, portanto, o documento não foi gestado nas entranhas da sociedade pátria. Nasceu antes no aparato ideológico estadunidense e europeu para subsequente irradiação a partir de um ponto único.
O imperialismo clássico era bilateral e direto. O Reino Unido, a França, Bélgica, a Espanha ou Portugal mandavam em suas colônias e ninguém interferia. A versão moderna é multilateral e triangularizada. A norma que rege o Planeta – curiosamente revezada por vertentes esquerdistas ancoradas no discurso anti-imperialista! – é essencialmente incubada no Primeiro Mundo e irradiada para as periferias via organismos internacionais dominados por alguns Estados poderosos.
Nessa perspectiva, a iniciativa “Escola sem Partido” representa um reencontro do Brasil com o Brasil. É o País profundo avisando a ONU que a casa tem dono. Mas, é preciso expandir a luta, pois lá vem mais um atropelo. A Base, com efeito, veicula a bagagem valorativa acima aludida. Não se limita a definir um conteúdo cognitivo. A pretexto de proporcionar uma “formação humana integral”, objetiva inculcar uma mecânica mental bem particular. Sob o leme incessantemente repetido do pluralismo, produz isto sim uniformidade de pensamento. E pretextando a inclusão, exclui sem apelo toda escolha distinta.
A BNCC, em essência, tranca as opções espistemológicas numa caixinha de variáveis pós-modernistas e entrega a chave para alguns “especialistas” encastelados na máquina decisória de Brasília. Não que o ferramental proposto seja inepto. É, pelo contrário, fecundo em muitos contextos analíticos e permite capturar dimensões particularmente sutis da realidade. Deve, portanto, ser oportunamente operado quando se justifica o uso. O que não se pode, contudo, é confinar a Nação inteira a essa forma exclusiva de relacionar-se com a vida.
De certa forma, a Base propõe um suicídio intelectual. Sugere a formação de gerações incapazes de imaginar qualquer coisa fora uma crítica frankfurtiana que critica tudo menos a própria crítica ou de um pensamento desconstrutivista que desconstrói qualquer coisa salvo o deconstrutivismo. E, francamente, não se percebe em lugar nenhum onde a diversidade proclamada pretende integrar a diferença daquele cuja diferença é justamente não gostar muito das diferenças propostas.
Assim, a matriz da Base é claramente antipositivista e agrada muitos por esse lado. Contudo, o positivismo não é sacrilégio. Contribui inclusive em muito para instrumentalizar a aprendizagem em diversos campos. Mas, como poderá um aluno aproveitá-lo se o modelo de tolerância ofertado não alberga essa forma de raciocínio? E onde achará espaço um professor de formação tomista cuja visão de mundo se alimenta na Revelação tanto quanto na razão? Da mesma forma, como sobreviverá num ambiente relativista quem acredita em princípios morais absolutos?
A BNCC é, pois, uma camisa de força que haverá de empobrecer a Nação, porque ostraciza inúmeras perspectivas humanas. Talvez possa formar pessoas com alguma funcionalidade para o mercado. Contudo, não produzirá a excelência de outrora, porque suas linhas traem uma tendência utilitária rasa. Fabricará sim gente para manifestar contra a homofobia ou o aquecimento global. Mas, é duvidoso que ensine a ler, escrever e contar direito. Porque, de tanto prestigiar os aspectos atitudinais, a escola negligenciará fatalmente os conteúdos cognitivos e privará a juventude do saber que social e economicamente emancipa o cidadão na vida.

Anticristianismo
No entanto, a mais dramática consequência do projeto decorre das feições religiosas do Brasil. Porque dizer que a Base colide com o cristianismo é muito pouco. Ela tenciona, isto sim, destruí-lo. Pois, tudo aquilo que forma o caráter do ponto de vista bíblico é politicamente incorreto na visão em tela.
Cristão tem uma âncora moral milenar pouco propensa a ceder às contingências. Inspira-se em doutrina perene. Pauta-se por um sistema estável de valores e conceitos que não mudam com as conveniências ou os caprichos da hora. Não chama aborto de Direito Reprodutivo. Não transige com o conceito de família. Não minimiza os estragos da droga. Não responsabiliza os demais pela própria fraqueza. Coloca o livre arbítrio no centro da ética e corrige os erros trazendo sobre ele mesmo a ideia de culpa. Não chama delinquente de vítima, malcriação de síndrome, homem de mulher ou assassinato de eutanásia. Rejeita o ecocentrismo a colocar o ser humano como mais um elemento do cosmos em pé de igualdade com as árvores e as borboletas. Não adere à ideia de equivalência das culturas. Hierarquiza as civilizações. Sobrepõe Direito Natural a Direito Humano. E, a não ser que perca a fé no caminho, atravessa as turbulências da vida intacto sem olhar para os modismos.
Relativismo moral e ética situacional definitivamente não combinam com Verdade Revelada ou virtude e pecado. Onde Foucault & Cia se impõe, portanto, qualquer Igreja morre… a não ser virando Country Club.
Em termos claros, pais cristãos não reconhecerão os filhos, e os filhos não mais conhecerão os pais a meio percurso do Ensino Fundamental. Mesmo que a formação aconteça numa escola confessional, porque a BNCC fixa metas que valem tanto para as escolas públicas quanto privadas. E os resultados serão cobrados pelos sistemas de avaliação nacional desde já em operação. Então, os currículos terão de adaptar-se às exigências. E a formação dos professores deverá acompanhar a mesma lógica. Logo, não haverá escapatória: o fecho será institucional e sistêmico.
Consequentemente, a dicotomia “Base Curricular Nacional versus Conteúdos Curriculares Regionais” – continuamente evocada como prova de diversidade educacional – é uma distração que desvirtua o verdadeiro debate. Não há dúvida que diferenças locais requerem ajuste de programa, mas um pluralismo baseado em critérios geográficos não resolve o problema. O certo seria atender as diferenças filosóficas e religiosas.
Jean-Marie Lambert é Pós-doutor em Ciência da Religião, doutor em Direito Internacional e professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).