Terceiro livro de escritor carioca é um flerte com o real e o absurdo
03 fevereiro 2015 às 11h10

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Os contos de “Petaluma”, de Tiago Velasco, centram-se em momentos de transições absurdas e irreversíveis

Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
Há uma desnaturação recorrente nos contos de “Petaluma”, de Tiago Velasco. Personagens e lugares que se divorciam de suas características originais, transfazendo-se, coisificando-se. A única exceção fica por conta da narrativa que fecha e dá nome ao livro. Nela, o autor remonta um curto período de angústias e de incertezas, oferecendo ao leitor um relato cortante, no qual a realidade se impregna de ficção para ocultar nomes e traduzir sentimentos.
Tiago, o narrador-personagem em intercâmbio num país de língua inglesa, vai trabalhar como busboy no restaurante Petaluma. Atacado pelo desterro, pela condição de latino em meio a outros latinos que extraem de subempregos uma chance de redirecionar a vida, ele se vê escudado pela ideia redentora de ser jornalista e escritor. Chega a colaborar com sites e revistas sobre música, porém, gradualmente, a experiência se torna um trauma, cujo efeito irá ruir o relacionamento com uma namorada que viajou consigo e, ao contrário dele, não fraquejou e foi “engolida pela cidade”.
Ainda assim, o fato de o conto existir mostra que, a despeito do ressaibo, o autor-personagem cumpriu seu objetivo. Talvez, ele tenha diluído sua identidade por um momento, mas, logo à frente, a reconsolidou –– diferentemente dos demais textos em que a transformação é fatal e irreversível. Se em “Petaluma”, o conto, o autor lida com a verdade, o restante da antologia flerta com o absurdo. Um estranhamento penetrante, um não pertencimento que anula.
“A morta de São José”, cuja premissa se aparenta a do conto “A cabeça”, de Luiz Vilela, situa-se neste terreno movediço. Ali, igualmente estão “Em pedaços”, sobre um homem que acorda desmemoriado num hospital e sai pelas ruas à cata de si, e “Reflexo”, um retrato hedonista de como quebrar o ócio pode ser aterrador.

Velasco adiciona doses sutis de um tipo rascante de humor em seus textos. É o que pode ser conferido no surreal “… a dois”, sobre um casal que, ao completar 40 anos de matrimônio, desperta com as pontas dos dedos da mão de um coladas nas do outro. O final é surpreendente e divertido, num estilo Monty Python de diversão.
“Estrangeiro” e “Ernesto/Andrezza” são os pontos altos, sobretudo se o leitor morar ou conhecer bem o Rio de Janeiro. O primeiro satiriza os roteiros turísticos pela cidade na pele de um carioca que, sem perceber, começa a estrangeirar. Já o segundo segue a rotina de um travesti que sonha em encontrar, entre os clientes, um “Brad Pitt para lhe sustentar”. Quando o acha, porém, o amor confronta-se à condição de ser uma mulher no corpo de um homem.
Apesar de não estabelecerem uma unidade temática, os contos de “Petaluma” guardam o compromisso de defender uma proposta e se saem tão bem quanto o autor, seguro na construção e na condução de sua prosa.
Leia um trecho de “Petaluma”, conto presente no livro de mesmo nome, do escritor Tiago Velasco:
“Hoje, nove ou dez anos depois, vejo Petaluma como a reunião das minhas neuroses. Não percebia naquele período. Não percebi durante esse tempo todo. Agora enxergo. Estou mais claro. Concreto. Não mais um fantasma. Aquele ser que passou por Petaluma.
*
1.
Acordei com o alarme polifônico do celular pré-pago compartilhado com Ela. Oito da manhã. Dormi já era mais de uma. Dois períodos de trabalho no dia anterior. Normal em Petaluma. Motivo de satisfação pra maior parte dos colegas de trabalho: money, plata, grana.
Enrolar mais um pouco na cama era impensável. Após despertar, uma energia dolorida e incômoda perpassava o corpo inteiro. Joelhos, cotovelos, calcanhares, nódulos dos dedos, as articulações existentes em mim concentravam a dor e a replicava. Ossos e veias, highways. A consciência do corpo, traumática e premonitória.
Uma hora para o banho, o café da manhã — uma fatia de pão integral com margarina I can’t believe it’s not butter e queijo, um copo de leite com chocolate em pó —, a roupa mais quente que tivesse no armário azul claro, a caminhada até o metrô suburbano, a espera pela composição da linha R, as três estações, o ônibus, uns quarteirões a pé. Menos quinze graus Celsius lá fora. E aqui, nos seis metros quadrados que divido com Ela, dentro de um apartamento de dois quartos de paredes de papel, o heater tornava o ambiente menos hostil.
A culpa, o medo, o fracasso iminente, a distância da pátria, a ausência eram reforçados toda vez que adentrava a porta de vidro de Petaluma. Ser um vencedor, como a cultura local solicitava, estava a léguas de mim, ali, no salão, rodeado de mesas e recém-colegas que dividiam tips, propinas, gorjetas.
Good morning, busboy. An expresso, please, dizia a manager russa quando não havia sonhado com Stalin e acordava de bom humor.
Good morning.
2.
Ao deixar todos pra trás, ainda no aeroporto, qualquer sensação de acolhimento se foi. O sujeito punk, ao encontro da terra punk, perdeu o moicano na apresentação da passagem à funcionária da companhia aérea. As primeiras lágrimas apareceram logo que eu e Ela saímos da vista dos nossos familiares. Não teria forças praqueles quatro ou cinco meses. A certeza veio antes de sacar o passaporte. E me apoiei n’Ela como gostaria de me apoiar agora. Deve ter visto o medo. Ainda não a sobrecarregava. Questão de tempo. Ela não suspeitava que ia cuidar de mim. Eu tinha certeza. Calei-me.
OBS 1:
Cheguei quase tão cedo quanto àquele dia, nove ou dez anos atrás. Sol fraco. Frio menos repulsivo. Em meio ao monóxido de carbono que saía dos escapamentos de táxis
e ônibus, um cheiro de não-sei-de-quê me trouxe aquele tempo de neuroses. Diferente. Os anos. Eu. O momento. Onde estará Ela?”
Título: Petaluma
Autor: Tiago Velasco
Editora: Oito e Meio
Valor: R$ 35,00