Sobre(posição): criticidade do cronos ficcional/real das “Linhas do Tempo”, de Tatiana Guimarães
24 novembro 2024 às 00h00
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Pedro Chaves dos Santos Filho
Especial para o Jornal Opção
“O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza”. Guimarães Rosa (1908-1967)
As enseadas literárias sempre me comoveram, afinal de contas sou um eterno amante da cultura, da prosa, dos versos e, sobretudo, das boas surpresas. É nesse liame que me envaideci e, com muito apreço e admiração, recebi da amiga e autora desta obra “Linhas do Tempo — Experiências Propulsoras Para a Superação”, a consolidada médica Tatiana Guimarães este trabalho que me ascendeu percepções de lugares que vagamente refletimos enquanto sociedade e digo, essencialmente, o espaço e o tempo. Elegi a epígrafe disposta para iniciar esta crítica, pois Guimarães Rosa, além de um mavioso escritor, também foi um médico afamado em sua geração literária intitulada modernismo. Além de escritor, Guimarães foi membro efetivo da Cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras (ABL) e também e diplomata, seus encantos literários ecoam até a contemporaneidade, pois, efetivamente, o referido autor dinamizou a sua vida como médico e escritor.
Nesse aclarar associativo decidi, portanto, partir dessa escolha para dizer que os pontos sinestésicos que trago neste diálogo crítico consideram, sobremaneira, a vida do autor de forma concatenada com a sua produção o que acontece, costumeiramente, nos corredores da literatura e nesse caminho, chamamos de crítica biográfica. Dotado para a prosa nos enveredados caminhos da literatura, Guimarães Rosa teceu em seus textos que se tornaram obras consagradas como: “Magma” (1936), “Sagarana” (1946), com o “Vaqueiro Mariano” (1947), “Corpo de Baile” (1956) dividida em três novelas: “Manuelzão e Miguilim”, “No Urubuquaquá, no Pinhém” e “Noites do sertão”, “Grande Sertão: Veredas” (1956), obra que marcou tantas gerações como a minha, “Primeiras Estórias (1962)”, “Campo Geral” (1964), “Noites do Sertão” (1965) produções que sempre valorizaram o eu, o espaço em que o indivíduo se encontra e, principalmente, como esses corpos se relacionam. No caso de Guimarães Rosa, foi o Estado de Minas Gerais que serviu de base para sua produção sensível, regional e que se tornou nacional e, “a posteriori”, internacional.
Gosto de pensar a partir desse campo, pois antevejo neste trabalho intitulado “Linhas do Tempo” um caminho parecido com o que Guimarães Rosa percorreu. Relaciono e estabeleço essa conectividade literária por também encontrar nesta obra que apreciei, caminhos e preocupações com o nosso eu, quando me refiro às trajetórias e desafios que encontramos em nossas vidas, ora no bojo pessoal, ora na esfera profissional e por que não, espiritual. Outra curiosidade que muito me apetece é o sobrenome de ambos os autores, que além de médicos e escritores também grafam em suas identidades o belíssimo sobrenome “Guimarães”. Veja, nesse aspecto, o poder associativo da literatura que nos irmana e nos coaduna, interligando polos e faces daquilo que sentimos, pensamos e professamos. Começo, muito generosamente, a transitar nesta obra com meu coração livre e preparado para o encantamento. Em primeira ordem, salpico o comentário incipiente para dizer o quão me alegrou a construção e harmonização da capa. A cor rosa, também me recordou o sobrenome do autor eleito para iniciar esta crítica. Elejo essa percepção, pois a cor rosa remete a vivacidade e, nesse preciso sentido, passei a apreciar com muita atenção o subtítulo da obra: “Experiências propulsoras para a superação”.
Nunca será fácil dinamizar ou pensar a tarefa da superação. Devo partir agora para o deleite literário produzido por Tatiana Guimarães que inicia com duas epígrafes intituladas “Esperança” e “Ao leitor”. Esses dois recortes, para mim, verdadeiros tapetes-vermelhos demonstram e escancaram o intencional da autora e que muito me tocou, refiro-me ao direcionamento ao leitor, que deverá se despojar para apreciar a sua mensagem e seu bradar de alma e de corpo. Ao evoluir dedilhando página a página, deparei-me com um sumário consistente 27 textos que terminam com recorte intitulado “Autofaxina”, os outros dois textos de números 28 e 29 trazem as reflexões finais e um outro recorte sobre a autora. Muito me importa destacar que a tessitura do trabalho me fez pensar dois gêneros bastante conhecidos na literatura, o conto e a crônica. É por esse caminho literoficcional que senti a autora colocar os seus pés e transitar pela enseada que pode indicar caminhos para a reflexão, a vida e a superação. Destaco também que o tom esperançoso da obra foi para mim o ponto mais sensível e diria até nevrálgico da produção da autora Tatiana Guimarães, notei, nesse tom esperançoso que sua vida e seus desafios superados podem servir de receita infalível para quem, assim como a autora, segue a sua determinação.
Antes de continuar, destaco o porquê do título desta minha crítica: “Sobre(posição): criticidade do cronos ficcional/real” arrolado no início deste diálogo que busco – cuidadosamente – estabelecer com minhas singelas impressões literárias e humanísticas. O título sobre(posição) me ocorreu ao ler na íntegra o livro, pois, a mudança, a transformação, ou seja, a busca por situações melhores deve estar sempre “Sobre” aquilo que não nos agrada e, para isso, temos que tomar uma “Posição” de coragem, fé e, principalmente, esperança. Depois, trago o vocábulo criticidade, pois, quando nos debruçamos em um trabalho para tecer uma crítica, nossas impressões críticas são intituladas criticidades. Nesses meandros, elegi os vocábulos cronos ficcional e real, pois na mitologia grega, cronos é o Deus do tempo, matéria tão elucidada na obra e os aspectos ficcional e real, foram por mim escolhidos, pois, embora haja a substância do imaginário nesta obra, as veredas da verdade, do real de tudo o que vivemos também faz morada nas linhas tecidas pela autora.
A obra “Linhas do Tempo”, de Tatiana Guimarães, explora as complexas interseções entre a vida prática e o mundo interior, abordando, em um discurso reflexivo, a jornada humana e a superação dos obstáculos. A autora utiliza seu olhar clínico de médica, aprofundado por sua sensibilidade artística neste livro, para refletir sobre o ato de pensar e decidir, qualidades fundamentais na travessia da vida. Sua escrita carrega um propósito de cuidado, ampliando o conceito de “curar” além do físico e indo ao encontro da alma e dos pensamentos, promovendo uma experiência quase terapêutica para o leitor. Em suas linhas, cada decisão e cada escolha aparecem como elementos emancipatórios na construção da existência, desafiando a noção de que a vida é apenas um conjunto de eventos lineares.
Tatiana Guimarães encontra um paralelo notável com o legado de João Guimarães Rosa, que desvendou os enigmas do ser humano em suas “veredas” literárias, buscando o “outro” como centro de suas reflexões. Ambos os autores, em momentos históricos diferentes, compartilham a formação médica e a preocupação com a vida humana em suas profundidades, trazendo para a literatura uma visão rica e empática sobre o ser humano. Enquanto Rosa usa a vida do sertanejo mineiro como metáfora para os dilemas existenciais, Tatiana adota a ideia de “Linhas do Tempo” para representar os caminhos da vida, propondo que, assim como as veredas de Rosa, elas são repletas de escolhas e bifurcações entre alma e pensamento.
Tatiana demonstra – textualmente – mesmo que de forma involuntária, inspirar-se na filosofia existencialista que permeia a obra de Guimarães Rosa, sobretudo em Grande Sertão: Veredas, onde o protagonista Riobaldo pondera constantemente sobre o destino e a escolha. Em “Linhas do Tempo”, a autora parece nos lembrar que, assim como nas veredas, o caminho que seguimos é resultado de decisões, mesmo que muitas vezes tomadas diante de incertezas. No entanto, Tatiana acrescenta uma visão prática e orientada pelo autocuidado, revelando seu compromisso com o bem-estar mental e emocional de seus leitores. Essa postura remete ao papel do médico humanista, que acolhe o sofrimento alheio e, ao invés de impor respostas, estimula a reflexão e a consciência.
Em uma análise mais profunda, é possível perceber que a obra ““Linhas do Tempo” transcende o caráter motivacional comum para oferecer uma jornada introspectiva. A obra subverte a estrutura linear ao propor uma visão cíclica da vida, em que cada decisão, seja ela acertada ou equivocada, deixa marcas no tempo e serve de aprendizado. Tatiana reflete, assim, um entendimento maduro da complexidade humana, próximo ao de Rosa, que jamais reduziu suas personagens a estereótipos, mas as tratou como seres complexos, repletos de dilemas e ambiguidades. Tatiana, por sua vez, propõe que o leitor entenda as próprias “Linhas do Tempo” como um mapa de si, valorizando cada escolha e cada erro.
Ao comparar suas linhas ao universo rosiano, Tatiana traz uma linguagem acessível, quase dialogal, que diverge do estilo rebuscado de Guimarães Rosa, mas que mantém um propósito semelhante de instigar a autorreflexão. Em Rosa, a linguagem regionalista e os neologismos criam uma atmosfera particular e exigem do leitor uma imersão no universo sertanejo; Tatiana, no entanto, adota uma abordagem mais direta e simples, voltada ao leitor urbano e contemporâneo, interessado em práticas de autocuidado e em reflexões acessíveis sobre o existir. Ambos, no entanto, convergem ao tornar a leitura um espaço de autodescoberta e de construção de sentido.
Tatiana parece estar consciente da tradição literária de que faz parte, utilizando suas “Linhas do Tempo” como um espelho para a condição humana, uma prática que ressoa com o modernismo de Guimarães Rosa, que revolucionou a literatura brasileira ao dar voz a uma filosofia profunda e universal, por meio de histórias aparentemente simples. Assim como Rosa projetou no sertão o palco para uma reflexão sobre o humano, Tatiana usa o tempo como elemento universal que conecta os leitores em suas diferentes jornadas. Ambos os autores incentivam o leitor a explorar seu “sertão interior” e a observar as veredas que percorrem.
Outro aspecto que aproxima os dois autores é a ênfase no processo de tomada de decisão. Em “Linhas do Tempo”, Tatiana sugere que o ato de decidir é em si mesmo uma expressão da humanidade, independentemente do acerto ou erro. Guimarães Rosa, em sua obra, enfatiza que o bem e o mal coexistem nas escolhas, e que a dualidade faz parte da condição humana. Tatiana parece adotar essa mesma visão ao incentivar o leitor a enfrentar seus medos e a seguir em frente, consciente de que o erro não é um fracasso, mas uma lição. A abordagem da autora vai ao encontro de uma perspectiva de crescimento, onde cada obstáculo e cada decisão colaboram para o amadurecimento pessoal.
Em uma leitura crítica, é válido destacar que a obra de Tatiana Guimarães também pode ser vista como uma forma de “terapia literária”, onde o texto não apenas apresenta uma reflexão, mas busca agir como um bálsamo para os desafios emocionais do leitor. Ela parece direcionar-se a um público que busca mais do que apenas entretenimento na literatura, oferecendo uma experiência de autodescoberta e uma visão reconfortante para quem enfrenta as incertezas da vida. Em comparação, Rosa oferece um enigma, uma reflexão indireta sobre a vida e a morte, enquanto Tatiana entrega uma mão amiga, uma palavra de alento.
Esse caráter terapêutico, entretanto, não reduz a obra à autoajuda comum; ao contrário, Tatiana Guimarães, com seu repertório e conhecimento médico, eleva o discurso a um nível de responsabilidade social e ética, em que o escritor também assume o papel de cuidador. Em tempos de crises e de busca por significado, obras como “Linhas do Tempo” preenchem uma lacuna importante, oferecendo ao leitor o espaço para explorar suas questões existenciais sem julgamentos. Rosa, em seu contexto, também ocupou essa função, oferecendo uma literatura que, embora complexa, serviu como um espelho para os leitores de sua época e permanece relevante até hoje.
Um envolvimento mais direto
No entanto, é fundamental observar que o alcance de “Linhas do Tempo” depende de sua interpretação pelo leitor. Ao contrário de Guimarães Rosa, que muitas vezes desafia o leitor a decifrar seu texto, Tatiana parece buscar um envolvimento mais direto, quase como um diálogo entre autora e leitor. Sua obra se apresenta como uma narrativa onde a autorreflexão é quase imediata, o que pode limitar, em certa medida, a complexidade interpretativa que caracteriza as obras de Rosa. A escolha por uma linguagem acessível reflete, porém, o objetivo de acolher um público diverso e promover uma reflexão prática, sem o hermetismo do modernismo. Saliento que a literatura parnasiana encanta pela sofisticação das palavras e sonetos, mas confesso, como genuíno sul-mato-grossense, que a simplicidade das palavras me toca e me comove.
A obra de Tatiana Guimarães se destaca, portanto, como um convite à introspecção, um convite a traçar suas próprias ““Linhas do Tempo”” e a enfrentar suas veredas. Tatiana propõe, então, o autoconhecimento e a aceitação. Em ambos os casos, a literatura transcende o papel de entretenimento para se tornar uma verdadeira prática de cura e de reflexão.
Esse legado literário de cuidar do outro, tão característico de Guimarães Rosa, é ecoado por Tatiana em sua obra. Ambos os escritores, cada um a seu modo, expressam uma preocupação ética com o leitor, oferecendo, em suas obras, mais do que palavras, mas um encontro com o próprio eu. Tatiana, ao traçar suas “Linhas do Tempo”, propõe um paralelo à “travessia” rosiana, onde a vida é entendida como um constante aprendizado e onde cada obstáculo é parte dessa construção. Essa proposta resgata o papel da literatura como agente transformador e como espaço de acolhimento, dando continuidade ao legado de Rosa e atualizando-o para o contexto contemporâneo. Parabéns à autora pela obra e gratidão por me proporcionar as aventuras das linhas que as vezes perdemos por não otimizarmos o nosso tempo e, sobretudo, a qualidade de tudo aquilo que nos circunda como os amigos, colaboradores, familiares e a nossa força-motriz que é a fé que nos permite virar a página! Seja você, leitor(a), convocado(a) a apreciar “Linhas do Tempo” como dose inequívoca para as diversas melhorias – as superações – em nossas vidas fazendo do cronos, ou seja, do tempo, a substância real do amor e decisão de viver.
Pedro Chaves dos Santos Filho é membro efetivo da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL), cadeira nº 19, ex-senador da República e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHGMS).
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