Mariza Santana

A “Tetralogia Napolitana”, da escritora italiana Elena Ferrante, é um fenômeno da literatura mundial. A história das duas amigas Lina e Lenu, da infância à velhice, ambientada inicialmente em um bairro pobre da periferia de Nápoles, aborda com sensibilidade a situação feminina em um ambiente machista no período da reconstrução da Itália após Segunda Guerra Mundial (1939-1945), da década de 1950 em diante.

A série de quatro romances (“A Amiga Genial”, “História do Novo Sobrenome”, “História de Quem Foge e de Quem Fica” e “História da Menina Perdida”) conquistou leitores e fãs no mundo inteiro e inspirou a série de TV denominada “My Brilliant Friend” (“Minha Amiga Genial”), que é o título do primeiro dos quatro livros da tetralogia. A expectativa é que agora, em setembro, seja exibida a quarta e última temporada da série, que se baseia no último livro. Além dos bons romances, chama a atenção o fato de Elena Ferrante nunca ter aparecido em público, sendo que até hoje existe muita especulação a respeito de sua verdadeira identidade, que permanece misteriosa a despeito do grande sucesso literário de sua obra.

Os cenários da história de Elena Ferrante

Isabela Discacciati: falando da Itália para entender a literatura de Elena Ferrante | Foto: Facebook

Entretanto, mais do que falar da amizade e da rivalidade de Raffaella Cerullo (Lina) e Elena Grecco (Lenu), o fio condutor da história da “Tetralogia Napolitana”, os livros de Elena Ferrante têm como ambiente a Nápoles natal de ambas, mas também a ilha de Ischia, onde elas desfrutaram de férias com acontecimentos decisivos para o desenrolar de suas vidas. Outros cenários foram a cidade de Pisa, onde Lenu cursou o estudo Normal; e Florença, local onde a protagonista e narradora da história passou o período de casamento e experimentou a maternidade. E, finalmente, o retorno a Nápoles, cidade enraizada no subconsciente das duas, da qual Lina nunca saiu e de onde Lenu partiu para novos desafios acadêmicos e amorosos, mas para onde retornou na maturidade.

O livro “Para Além das Margens — A Itália de Elena Ferrante”, da escritora mineira Isabela Discacciati, é um gostoso tour turístico, cultural e literário pelos locais da história da “Tetralogia Napolitana”. Os  admiradores da obra da escritora italiana são apresentados às localidades onde as duas personagens principais viveram, como o bairro que teria inspirado o local da infância e adolescência de Lina e Lenu. “Mas o bairro da infância de Lila e Lenu é o Rione Luzzatti do pós-guerra, com o majestoso estádio fascista reduzido a pó e com crianças que brincam entre a terra batida e o esqueleto de edifícios bombardeados”, cita a escritora.

Isabela Discacciati relata os mitos da criação de Nápoles. “A origem de Nápoles é permeada pela ambivalência. O mito da fundação da cidade mistura beleza e morte”, diz. Conforme o mito, Ulisses, o herói de “Odisseia” de Homero, na viagem de retorno a Ítaca passa pela costa sorrentina, bem próximo a Nápoles, e se amarra no mastro do navio para não ser seduzido pelo canto das sereias. A sereia Partênope, enfurecida por não conseguir seduzi-lo, se joga de uma rocha e seu corpo chega à ilhota de Megaride, o primeiro povoado da cidade, que daria origem a Nápoles.

Quanto à Ischia, para onde Lina, recém-casada, vai passar uma temporada em busca da cura para a infertilidade, a autora fala de suas belezas naturais e do patrimônio histórico. Mas destaca também os grandes escritores que passaram temporadas na ilha, como o casal britânico Percy (poeta que morreu afogado na Itália) e Mary Shelley, esta última foi a autora do clássico “Frankenstein”. Outro grande escritor, o norte-americano Truman Capote, autor de “A Sangue Frio”, passou quatro meses em Fioro, comuna de Ischia, com seu companheiro Jack Dunphy. Outra curiosidade citada pela escritora é que foi na ilha Ischia que a viúva de Benito Mussolini, Rachele Guidi, cumpriu seu exílio com os dois filhos menores, no período de 1945 a 1949.

Livro da escritora italiana Elena Ferrante (ao centro) e o livro da pesquisadora Isabela Discacciati | Foto: Jornal Opção e Facebook

Em Pisa, onde Lenu estudou na Escola Normal, a autora de “Para Além das Margens” visita pontos históricos, passeia ao longo da avenida que margeia o Rio Arno e conversa com Michela Vilani, uma senhora de origem napolitana que vive na cidade. Já em Florença, cidade onde a personagem principal da Tetralogia Napolitana morou no período em que estava casada com Pietro Airota, se tornou mãe e começou a despertar a participar de reuniões de mulheres, a autora nos apresenta prédios históricos e fatos da época, como a atuação das pensadoras Elvira Bannotti e Carla Lanzi, que fundaram os primeiros grupos feministas italianos.

A brasileira Marielle Franco na Itália

Na visita ao prédio onde anteriormente funcionou o Hospital dos Inocentes, no terraço uma placa emociona a escritora brasileira. Tem o  nome da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada junto com o motorista Anderson Gomes no Rio de Janeiro em 14 de março de 2018. “Marielle está no alto, sobre os alicerces das oblatas, aquelas que se ofertavam, que ofereciam sua força, sua fé, sua energia e suas mãos por outras mulheres e pelos homens, pelos frágeis, pelos vulneráveis, pelos que não tinham uma casa para onde retornar”, ressalta a autora.

Na última parte do livro, Isabela Discciati retorna a Nápoles, para visitar a parte operária  (ou que um dia foi operária) da cidade, numa referência ao período em que  Lina morou no bairro de San Giovanni a Teduccio e trabalhou em uma  fábrica de embutidos. Ao participar de uma reunião de trabalhadores, ela denunciou  a situação precária  dos operários. Segundo a escritora, as personagens de Elena Ferrante tornam-se ainda mais  verossímeis quando ela conversa com pessoas que viveram no período descrito pelos livros. “Convenço-me de que a tetralogia napolitana compila em mais de suas 1.700 páginas um retrato, se não fidedigno, ao menos muito próximo da história da Itália, a partir do pós-guerra”, analisa.

Assim, no epílogo, a escritora avalia o desaparecimento de Lina após perder a filha, narrado por Lenu no último livro da tetralogia (“História da Menina Perdida”), comparando a personagem “à bruxa, à deusa, à sereia, à mulher que perde as margens, evapora sem deixar vestígios para encontrar a luz”.

O livro “Para Além das Margens” é daquelas obras que o leitor devora sem pudor e é recomendado para os inúmeros fãs da história da amiga genial. Isabela Discacciati é mineira de Barbacena. É graduada em Jornalismo e Relações Públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e especialista em Cultura Italiana pela Universidade Ca’Foscari de Veneza.

Mariza Santana é crítica literária. Email: [email protected]

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