Ao narrar os difíceis anos da adolescência de Giovanna e a descoberta de uma tia irascível, o romance da italiana reúne todos os ingredientes capazes de cativar o leitor

Mariza Santana
Especial para o Jornal Opção

Giovanna é uma menina feliz, filha de professores, que mora em um bairro de classe média de Nápoles. Mas, aos 12 anos de idade e depois de um mau desempenho na escola, ouve sem querer uma frase sussurrada pelo pai à sua mãe, se queixando de que a filha estava ficando igual à irmã dele, “uma mulher na qual feiura e maldade coincidiam perfeitamente”. Após o choque sofrido aos ouvir tais palavras, a garota decide conhecer essa tia, que mantinha um relacionamento conflituoso com o irmão.

A partir desse momento, ela começa a sentir a influência da tia, que às vezes se mostra terna e amorosa, outras irascível. E procura nela, como se fosse olhando para um espelho, a comprovação de que seriam verdadeiras as palavras proferidas por seu pai. O desenrolar dos acontecimentos provocam mudanças na unidade familiar e na própria vida de Giovanna, que passa por reviravoltas. Tudo é relatado a partir da ótica de uma adolescente, para quem os sentimentos são intensos e os conflitos apresentam uma dimensão acima do normal.

“A Vida Mentirosa dos Adultos” (Intrínseca, 432 páginas, tradução de Marcello Lino), novo romance da escritora italiana Elena Ferrante, reúne todos os ingredientes para agradar o leitor. Vem após o grande sucesso editorial obtido com a obra “Tetralogia Napolitana”, mais conhecida aqui no Brasil pelo título do primeiro livro, em português, “A Amiga Genial”.

Os personagens de “A Vida Mentirosa dos Adultos” são densos e complexos, as diferenças entre a Nápoles letrada e a Nápoles operária desnudam as tensões sociais existentes na cidade, e até na própria Itália (as diferenças entre Norte e Sul daquele país europeu). A passagem da adolescência para a juventude de Giovanna é relatada com todas as contradições e inseguranças inerentes a esse período da vida. E mais: uma prosaica pulseira se apresenta como a segunda “protagonista” do romance, pois funciona como uma espécie de fio condutor da narrativa.

Giovanna, ao buscar contato com a tia, conhece o outro lado de Nápoles, o setor industrial, cinza e ignorante; totalmente oposto ao mundo azul e educado onde vivia com seus pais. Ela é apresentada à cidade do dialeto napolitano, das pessoas sem instrução, mas habitada por gente cujas histórias acabam se mesclando com a sua. E a garota, ao final, se torna uma espécie de ponte entre esses dois mundos tão distintos.

Anita Raja, tradutora italiana, e seu marido, o escritor italiano Domenico Sartnone: um deles seria Elena Ferrante? Ambos negam | Fotos: Reproduções

Mas voltando à já citada pulseira, ela é onipresente na história, pois muda de dona várias vezes, não sem trazer consequências para a vida de alguns personagens. A simples posse desse ornamento feminino vai ditando o desenrolar da convivência e desmascarando a vida mentirosa dos adultos, como sugere o título do romance.

Andrea, o pai; Nella, a mãe; o casal de amigos de seus pais, Mariano e Constanza; as filhas deles e amigas de infância Ângela e Ida, a tia Vitoria e seu estranho relacionamento com a viúva Margherita e os filhos, e finalmente Roberto, o professor universitário. No relacionamento com eles, Giovanna é, em alguns momentos, uma terna e inteligente garota, enquanto em outros deixa emergir sua parte mais obscura, sempre à procura de sua própria imagem, mas perseguida pelas palavras paternas. Ela se pergunta: serei mesmo a cópia de minha tia?

Assim, é impossível resistir à tentação de traçar um paralelo de Giovanna com Lila, a personagem da “Tetralogia Napolitana”, sucesso editorial de Elena Ferrante, conforme já citei anteriormente, e obra que deu origem à série “My Brilliant Friend”, produzida pelo canal de TV HBO.

Giovanna é um emaranhado de contradições, às vezes malévola, outras vezes insegura, em alguns momentos mostra-se decidida em suas atitudes, ou seja, é uma adolescente típica. No final do romance, com 15 anos de idade, já vê o mundo com mais equilíbrio e segurança. Na narrativa de Elena Ferrante, a garota sai da infância amada e querida pelo pai, para uma adolescência assombrada pela comparação com a tia “feia e má”. Dilui assim as figuras paterna e materna, na busca da construção de sua própria imagem.

Os dois romances da escritora italiana – “Tetralogia Napolitana” e “A Vida Mentirosa dos Adultos” – têm pontos em comum, na minha opinião. Suas protagonistas são mulheres fortes e em busca de uma identidade e de seu lugar no mundo, sem deixar de se questionar a respeito de questões como a importância da educação e os mistérios do sexo.

A própria autora, aliás, é um mistério. Não se deixa fotografar, concede entrevistas somente por e-mail, mas já ficou subentendido (pelo menos para mim) que ela é mesmo do sexo feminino. Isso porque somente as mulheres poderiam compor personagens femininas tão densas e apaixonantes, capazes de levar o leitor (e talvez ainda mais, a leitora), a percorrer, de maneira afoita, de um capítulo a outro, sempre à espera de uma surpresa. Na sua obra não há espaço para o lugar comum, e você acaba se surpreendendo. O desfecho comprova isso. Só não vou adiantar aqui para não estragar o prazer da leitura.

Mariza Santana, jornalista, é crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção