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Chris Resplande

Especial para o Jornal Opção

Alvina era o seu nome. Era minha avó, a mãe de minha mãe, mas era também a mãe dos sobrinhos, dos amigos, dos vizinhos, de todos. Alvina era um oráculo frente ao qual nos sentávamos, contritos, confessávamos os pecadilhos, pedíamos conselhos e de quem ouvíamos boas histórias. Saíamos leves, pois tinha sempre uma franqueza amiga, uma tirada engraçada e uma comidinha de vó para oferecer. Tive o privilégio de sua convivência desde a tenra infância até os 20 anos de idade.

Minha avó morava em uma pequena casa num bairro muito simples, a Vila União. A vila de minha infância – lá pelos anos 70/80 – era feita de casinhas todas iguais, ruas sem asfalto, muito barro e muito pó, a depender da estação do ano. Os moradores todos se conheciam e os favores e gentilezas faziam parte da vida cotidiana.

Eu morava, à época, em Rio Verde, bela cidade distante 200 quilômetros da capital e vir a Goiânia era uma festa, pois significava passar uns dias com a vovó Vina. Adorava acompanhá-la de ônibus pela cidade e ria muito quando ela dizia que “iria a Goiânia”.

Dicionário de plantas 1

A dona Alvina era famosa na Vila União. Estudiosa das plantas medicinais, tinha em seu quintal muitos segredos e uma minifloresta com propriedades terapêuticas com a qual cuidava da vizinhança inteira com chás, unguentos e muito afeto. Anos depois descobri, na casa de meus pais, o livro de suas fórmulas mágicas, o “Dicionário das Plantas Úteis do Brasil”, de Gilberto Luiz da Cruz, edição de 1964.

Ao lembrar de seu quintal, fui até o pequeno jardim que cultivava logo à entrada de sua casa, com algumas flores e a dama-da-noite que exalava um perfume delicioso. O jardim me levou ao filósofo Bying-Chul Han, no livro “Louvor à Terra, uma viagem ao jardim”, presente que recebi da amiga escritora e poeta Sônia Elizabeth. 

Nele, o autor nos convida a passear por seu jardim e, neste passeio, uma experiência com o cuidado, com o tempo e o silêncio do cultivo, que nos devolvem a sensibilidade e corporeidade hoje tão perdidas no que chama de morno mundo digital, fazendo do jardim uma belíssima metáfora sobre a vida:

“O tempo do jardim é o tempo do outro. O jardim tem seu próprio tempo, do qual não posso dispor [como quiser]. No jardim muitos tempos próprios se cruzam. O jardim para o qual se trabalha dá muito em troca. Ele me dá ser e tempo.” 

Voltando à casa de minha avó, na sala apenas uma minúscula mesa, a cadeira de madeira maciça na qual tocava seu bandolim todas as noites e uma estante com poucas louças e muita poesia: Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Álvares de Azevedo, Castro Alves e tantos outros, bem como leituras espiritualistas e filosóficas. Era fã de Huberto Hoden, do qual acabei recebendo um exemplar.

Mas o que chamava a atenção era a vitrola anos 50: imponente, pés palitos, duas portinhas que escondiam o toca-discos e um rádio. Era tão preciosa que podíamos tudo em sua casa, menos manuseá-la. Seus discos eram uma de suas paixões, e deles tinha ciúmes, pois eram item caro para uma professora primária aposentada. Ao comprar, escolhia-os com muito cuidado e critério.

Nilo Amaro 1

Quando minha avó pediu que eu colocasse um disco para tocar, quase tive uma síncope. Passado o susto, com muita solenidade e reverência, escolhi o disco — o meu favorito — e coloquei-o na vitrola: Nilo Amaro e seus Cantores de Ébano cantando “Green Fields…”

“Lá, bem distante

onde o pôr do sol

põe tons vermelhos na noite como um véu

onde aos meus olhos

a terra encontra o céu

vivia outrora o meu bem em Green Fields.”

Vovó Vina, com as mãos sujas de polvilho, volta-se chorando:

– Por que você está fazendo isto comigo?

Alvina Rezende 420 111

Era a música não tocada do seu disco de cantar memórias; era imensa saudade do seu bem que, “ao voltar ao lar, já não encontra a esperar”. É “a fria solidão que em tudo existe”, e que revela em poemas melancólicos publicados em seu único livro de poemas, Reminiscências. Herdei o disco, que ainda hoje me acompanha. Cada vez que ouço, recordo dos seus olhos chorosos ante a ausência de seu amor.

Ah, Vó! quanta saudade! “Uma saudade marinada”, título deste poema para você.

Agora vou deixar de molho.

Hoje vou pôr pra marinar.

Porque hoje

eu cansei de tentar,

de escrever e apagar,

de rimar.

Rimo agora com jantar,

tomatinho de rodela,

mexidinho de panela

como minha avó fazia.

Cadiquinho de farinha:

– Pode comer de colher?

– Vó, tô com saudades.

Seu bandolim de noitinha,

sua cama de pular.

Onde a senhora tá, vó?

Cadê seu perfume alfazema?

Cadê eu, vó? Acha eu pra mim!

Espanta a assombração e

canta alto a cantiga:

– Oh leva eu, minha sodade!

Chris Resplande, funcionária pública do TRE, produtora cultural e poeta, é colaboradora do Jornal Opção.