O romance “A Montanha Mágica” é o olimpo de Thomas Mann
13 outubro 2019 às 00h00
COMPARTILHAR
Filho de uma brasileira, o escritor criou, numa obra seminal, uma verdadeira civilização — uma Mannlândia. Há personagens impagáveis como Naphta e Settembrini
João Paulo Teixeira
Especial para o Jornal Opção
Imagine que você pudesse subir ao Olimpo e enxergar a sociedade de cima. Fora do sistema, sem ser alcançado pelo tempo e espaço. É a síntese de “A Montanha Mágica” (tradução de Herbert Caro) — calhamaço de 900 páginas, na edição da Companhia das Letras (trata-se de uma reedição revista da versão da Editora Nova Fronteira), romance de Thomas Mann (pronuncia-se Mãn, como o alemão de mãe brasileira gostava de frisar depois que imigrou para os Estados Unidos).
A história é relativamente simples. Complexo é o que se passa nesse microcosmo, o presépio simbólico da sociedade europeia daquele tempo. É esse elemento que te transporta para outra dimensão.
Um jovem engenheiro naval, Hans Castorp, recém-formado, decide visitar o primo tuberculoso antes de imergir na “vida prática” na Tunder & Wilms Estaleiros, Fábrica de Máquinas e Caldeiras.
Narrado na terceira pessoa, Castorp chega a Rorschad, em território suíço, depois de atravessar o planalto da Alemanha meridional até a beira do lado de Constança. Subindo a montanha de locomotiva que serpenteia sob o ar rarefeito, se tem a descrição do jovem: um livro de engenharia Ocean Steamships a tiracolo e a maleta de coro de crocodilo herdada pelo pai e o avô.
O primeiro momento do livro narra sua aspiração inicial, que é representada neste trecho: “Dois dias de viagem apartam um homem — e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida — do seu mundo cotidiano, de tudo que ele costuma chamar de seus deveres, interesses, cuidados e projetos”.
Seu propósito, ingênuo, como se vê, é o mais jovial possível. Não tinha a intenção de levar a viagem a sério nem de se entregar totalmente a ela. “Propusera-se liquidá-la depressa, por que tinha de ser feita, depois regressar para casa tal como partira, e retomar sua vida anterior exatamente no ponto em que a abandonara por um instante.”
Pois bem, ao pisar na estação, é recebido pelo primo, com aspecto tão sadio como nunca lhe vira. A situação dele vai piorar muito, frise-se. Sobre o geral, macro, o que se escreve em toda crítica de Wikipédia sobre a “Montanha Mágica” é seu caráter de romance de formação, uma novidade na literatura mundial até então (ainda que Goethe, por exemplo, tenha escrito um romance de formação antes de Mann — “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, Editora 34, 608 páginas, tradução de Nicolino Simone Neto).
Os livros que se produzia até aquela época do século possuíam um estilo totalmente instrutivo, que vendia a possibilidade de progresso (parece os coach de hoje), mas focavam principalmente em instrução técnica de engenharia ou direito. Livros propagandísticos favoráveis a essa ou aquela corrente humanística também se destacavam.
Sem adentrar em pormenores típicos dos professores de Literatura de ensino médio, o livro narra a vida de “um herói” — como Mann o descreve — que, no caso, nada faz. No máximo, vai a passeios na “praça”, no refeitório cheio de “russos ordinários” e no quarto. Noutras oportunidades, apenas fica de prosa com outras personagens e, na maioria, consigo próprio.
Uma possibilidade extraordinária de Mann é de narrador onisciente, que vê por trás dos concretos e do tempo — ele narra a morte de uma paciente antes da chegada de Castorp no quarto — e também narra sonhos com verborragia, como um Galvão Bueno adicto da psicanálise.
Veja como este trecho é sublime: “Afinal de contas, é um leito de morte, um simples leito de morte. — E adormeceu. Logo, porém, começou a sonhar, e sonhou quase sem interrupção até a manhã do dia seguinte. Em especial, viu Joachim Ziemssen (seu primo, grifo meu) em posição estranhamente desengonçada, a descer num trenó por uma pista oblíqua. Era de um palor tão fosforescente quanto o do dr. Krokowki, e à sua frente achava-se sentado o aristocrata austríaco, cuja imagem era um tanto vaga, como a de alguém que apenas se ouvira tossir. ‘Isso pouco importa, a nós, aqui em cima’, disse o desengonçado Joachim, e logo era ele, e não o aristocrata, que tossia daquela maneira horripilante e lamacenta. Ao ouvi-lo, Hans Castorp verteu em lágrimas amargas”.
Como se vê, os sonhos também entram no cartapácio, mas, de tão bem enredados, nada têm a ver com aquela confusão oblíqua de sobe e desce escadas com motivação sexual do livro principal de Freud.
No livro “A Montanha Mágica” são aproximadamente 216 páginas narrando “só” o primeiro dia de Castorp no sanatório. Ressalte-se queo sanatório não tem nada a ver com os daqui do Brasil. Está mais para um hotel cinco estrelas, com vinhos, banquetes, música. Talvez, a única parte parecida com os trópicos tupiniquins seja a Medicina, exercida por russos e eslavos de uma forma tão rudimentar que beira até o charlatanismo que temos desse lado do Atlântico. (Vale lembrar que o poeta pernambucano Manuel Bandeira esteve internado num sanatório suíço. Ele tinha tuberculose.)
Outro elemento totalmente sublime desse romanção é a capacidade que você precisa abstrair-se para lê-lo. Fiquei esses 10 meses do ano absorvido por essa atmosfera, seja em momentos de hiatos no trabalho ou, em sua maioria, lendo-o a noite, depois da TV.
É até interessante lê-lo assim: você abandona o frenesi de um filme de ação ou dessas séries primárias e parte para uma narrativa tão arrastada — e, ao mesmo tempo, tão meticulosamente bem-feita – e é aí que se entende como a literatura é realmente um superpoder dos seres humanos. É ela é o único “superman” a nos transportar para dimensões, mundos e fluxos de consciência.
Quando se pensa na “Montanha Mágica” de Thomas Mann, aos poucos há a atração pela doença, pela introspeção e a morte. Antes dela, se tem um contato aprofundado com a política, a arte, a cultura, a fragilidade humana, permeada pelo suicídio — Naphta em pleno debate — e pelo lento passar do tempo. Aliás, esse é o elemento fundamental do livro: tudo se passa pela subjetividade absoluta do tempo. Esse é o elemento mais importante da narrativa.
Escrito por Mann durante a Grande Guerra (1914-1918), você não a percebe claramente, a não ser no breve capítulo final denominado simbolicamente com “o trovão”. É como se você, leitor, fosse uma espécie de fantasma do nazista pomposo Hermann Goering, comandante da Luftwaffe. Enquanto a guerra ardia, ele se resignava como um príncipe no seu campo de Reichsmarschall.
Pessoalmente, um dos livros que mais me enfeitiça é “Laranja Mecânica”, do escritor britânico Anthony Burgess. Lá, quando se passa tempo lendo aquele idioma maluco — e quase intraduzível para o português —, você termina o livro falando-o fluentemente. É como uma criança num país estrangeiro. Na “Montanha Mágica” acontece o mesmo. Você conclui-o naquela dinâmica, e percebe o quanto mudou enquanto se dedicou meses à leitura dessa grande obra da literatura mundial.
Settembrini e Naphta
Mas você termina com mais interrogações do que quando o começou (há quem postule que as perguntas são mais seminais do que as respostas). Elas são especialmente engendradas por duas personagens, importantíssimas à trama. É um italiano exótico — na minha cabeça, fisicamente é uma mistura de Henri de Toulouse-Lautrec na sua foto clássica de bengala e Charles Chaplin, também na vestimenta padrão —, o italiano humanista Settembrini.
O outro é Naphta, judeu jesuíta convertido ao Cristianismo (até há uma passagem curtíssima, que ele cita ter trabalhado com portugueses, em terras do Novo Mundo, possivelmente o Brasil). São esses dois eixos que influenciam Castorp e muitas vezes lhe roubam o protagonismo do herói que nada faz de heroico.
Settembrini e Napha são tão complexos que suas proposições são quase inquestionáveis. Ambos também discordam sobre absolutamente tudo, com percepções acentuadas sobre o tempo, a política, a religião, travando em debates intelectuais com garra, mestria e inteligência.
Se eles tentam convencer Hans Castorp — quase sempre em cima do muro — é você, leitor, que fica, digamos, na “volta do parafuso”. Como o li apenas uma vez, não há possibilidade de saborear cada elemento intelectual dos trechos, que possuem uma carga colossal de teorias, filosofias e informações oferecidas de bandeja por Mann por intermédio de suas criações. A tragédia que os embala é a iluminação que os redentora.
Em um arranjo excessivo de síntese e inocência, Lodovico Settembrini é a representação humana do Iluminismo, que atribui o progresso humano à ciência, na democracia liberal e no livre-arbítrio que governa aos homens. Naphta, teólogo da Companhia de Jesus, impedido pela missão por causa da tuberculose, enxerga na fé e na crença meios para transformar os algures humanos em pestes suportáveis, dando sentido à vida e as ações cotidianas. Se a luta sangrenta da Igreja lhe é justa, são as rebeliões liberais que causam a desgraça à humanidade enquanto espécie.
Você fica no meio desse tiroteio intelectual, ora convencido por uma ou outra teoria, que fazem o maior sentido enquanto você as compara. Há outros deslumbres como as formas hedonistas de Peerperkorn e a paixão de Castorp por Madame Chauchat.
Também há causas nacionalistas que algum crítico de Twitter classificaria como atual. Prefiro acreditar que foi um momento de felicidade e individualidade de Hans Castorp, sete anos antes de supostamente morrer como um soldado anônimo debruçado na lama de uma trincheira qualquer da primeira grande guerra. Pareceu-me a cena final de “Por Quem os Sinos Dobram”, mas, no miolo, é substancialmente melhor.
Marcaram-se trechos que surpreendem em extrema beleza estética, como as narrativas sobre o velório do avô que repercuto abaixo pela capacidade extraordinária de Thomas Mann. “Analisadas e resumidas, essas impressões seriam mais ou menos as seguintes: a morte tinha dois aspectos, um piedoso, significativo, de melancólica beleza, quer dizer, um aspecto religioso, e ao mesmo tempo tinha outro, absolutamente diverso e até oposto, um aspecto físico, bem material, que era impossível qualificar propriamente de belo, significativo, piedoso e nem sequer triste… Aquele que ali jazia, ou melhor, aquilo que ali jazia, não era portanto o verdadeiro avô; não passava de um invólucro, que — Hans Castorp sabia-o muito bem — não contava de cera, mas de sua própria matéria, e precisamente nisso residiam o indecente e a ausência de tristeza”.
Outro trecho está na página 821, quando se trata sobre o atentado ao príncipe herdeiro, na minha concepção (se não me falha o calendário da História) o assassinato de Franz Ferdinand, motivo que muitos especialistas dão como o pontapé inicial da guerra. Isso é tão sublimemente repercutido na capacidade de dualística de Settembrini que vale o registro: “Para a natureza sensível do humanista, o fim cruento de Naphta, aquela façanha terrorista do dispute sagaz e desesperado, tinha um choque violento demais, do qual não conseguia desfazer-se”.
Essa dualidade segue, ainda mais evidente, parágrafos à frente. “O sr. Settembrini era humanitário, mas, ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, era quase explicitamente belicoso. Por ocasião do duelo com o crasso Napha, comportara-se como um ser humano, mas em assuntos de maior importância, em que o espírito de humanidade, tomado pelo entusiasmo, se aliava à política em prol da ideia triunfante e dominadora da civilização, e onde se glorificava o cidadão mais simples altar da humanidade, tornava-se duvidoso saber se ele, de modo impessoal, continuaria disposto a evitar que sua mão derramasse sangue…”.
Por fim, a narrativa derradeira, “O Trovão”, quando 3 mil jovens mancebos são miseravelmente narrados no campo de batalha em busca de tomar uma planície. Esse trecho passa-se já no Planalto, depois que Hans Castorp já descera da montanha.
“Estão inflamados pelo esforço e também pelo impacto das baixas que sofreram durante a marcha pela floresta pantanosa. Pois o inimigo, sabendo-os próximos, ergueu em seu caminho uma barragem de artilharia com shrapnels e granadas de grosso calibre, e já na floresta, com estilhaços, golpeou os grupos deles, e que agora, uivando, jorrando e lançando chamas, açoita a vasta campina tombada. Eles têm que passar por isso, esses três mil mancebos febris, e como nova provisão, têm que decidir com suas baionetas o assalto às trincheiras cavadas diante e atrás da cadeia de colinas e também o assalto aos vilarejos em chamas, e têm que ajudar a fazê-lo avançar até determinado ponto, assinalado na ordem que seu líder traz no bolso.”
E o derradeiro final, aberto, amplo, é totalmente magnífico. “E assim, no tumulto, na chuva, no crepúsculo escapa de nossa visão. Passe bem, Hans Castorp, enfermiço e cândido filho da vida! Sua história terminou. Nós a contamos até o fim; ela não foi nem breve nem longa, foi uma história hermética. Nós a contamos em virtude dela, e não em razão de você, pois você era simplório… Adeus — se viver ou se ficar! Suas perspectivas não são boas; o macabro baile ao qual o arrastaram ainda vai durar uns vários anos de pecados e não queremos apostar muita coisa que você vá escapar. Por falar com franqueza, não sentimos escrúpulos por deixar aberta essa questão. Certas aventuras da carne e do espírito, que sublimaram sua singeleza, fizeram seu espírito sobreviver ao que sua carne dificilmente sobrevirá. Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto em seu reinar, você viu brotar da morte e da luxúria do corpo um sonho de amor. Será que também dessa festa mundial da morte, e também da perniciosa febre que inflama o céu da noite chuvosa, ainda surgirá o amor?”.
A tradução do alemão para o português, feita há 60 anos pelo austríaco Herbert Moritz Caro (amigo de Erico Verissimo), é revidada pelo especialista Paulo Astor Soethe. Em um posfácio a várias mãos, ele cita a mãe de Mann, a brasileira Julia da Silva Bruhns, nascida em 14 de agosto de 1851, entre Angra dos Reis e Paratay, no litoral do Rio de Janeiro. Ela cresceu na fazenda Boa Vista, “entre o mar e a mata”, como ela descreve em suas memórias “Julia Mann — Uuma Vida Entre Duas Culturas”. Certa feita, entrevistado por Sérgio Buarque de Holanda (que teve um filho alemão), na década de 1920, Thomas Mann revelou que, quando criança, a mãe cantava músicas para seus filhos pequenos em português. Eram canções de ninar.
Outro fato sobre o posfácio é a versão de Hans Wibkirchen, presidente da Sociedade Alemã Thomas Mann, sediada em Buddenbrookhaus, em Lübeck: “Os Mann representam para a Alemanha o que os Kennedy representam para os Estados Unidos e o que os Windsor representam para a Inglaterra” (Heinrich Mann, irmão de Thomas, também era escritor. Assim como Klaus Mann, filho de Thomas e autor do romance “Mephisto”, levado ao cinema. Golo Mann, também filho de Thomas, era um grande historiador). Não é preciso dizer mais.
João Paulo Teixeira, jornalista, é diretor da JPP Propaganda.