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O livro de Adelto Gonçalves corrige teses errôneas, problematiza e reequaciona um período determinante da história do Brasil e de Portugal                                                             

Daniel Pires

A publicação de “O Reino, a Colônia e o Poder: o Governo Lorena na Capitania de São Paulo — 1788-1797”, de Adelto Gonçalves, constitui um acontecimento editorial de vulto. Estamos em presença de uma obra relevante para a compreensão da história brasileira e portuguesa do último quartel do século 18. Nela é equacionada uma época conturbada da história universal. Com efeito, a Revolução Francesa estava omnipresente e as suas realizações repercutiam-se de forma exponencial, dando um novo rosto à ordem social e política. Portugal encontrava-se num período de transição — a Vir adeira, que reverteu algumas das medidas mais profundas implementadas pelo Marquês de Pombal, entretanto caído em desgraça — e no Brasil as ideias independentistas das elites fermentavam.

Livro do pesquisador Adelto Gonçalves

Adelto Gonçalves perspectivou, de forma dialéctica, além das linhas de força da época, aquelas que caracterizavam São Paulo. Sucessivamente, o leitor tem acesso ao quotidiano multímodo e estuante de uma cidade colonial: a forma com era exercido o poder, o diálogo entre a metrópole e a periferia, as instituições existentes, a economia, as mentalidades e a cultura. Por outro lado, é introduzido na mundividência de Bernardo Lorena, que governou aquela urbe durante uma década. Para melhor problematizar o consulado daquele aristocrata, Adelto Gonçalves analisou, ao longo de cerca de duzentas páginas, os primórdios da Capitania de São Paulo, debruçando-se diacronicamente sobre os factos marcantes que ali tiveram lugar.

O escopo deste ensaio é, portanto, amplo e de extrema complexidade. Para ser levado a bom porto era condição sine qua non que o seu autor consultasse, de forma aturada, uma bibliografia extensa e ainda que procedesse a um exaustivo trabalho de arquivo, aliás, como é seu timbre. Deste modo, Adelto Gonçalves percorreu, durante anos, algumas das principais instituições brasileiras e portuguesas, exumando documentos que «dormiam o sono dos arquivos», cuja consulta lhe facultou matéria-prima para descrever, com rigor, sem especulação, aquele período e para formular teses que os historiadores vindouros não poderão deixar de ponderar atentamente. Registe-se ainda que tal metodologia, por vezes, não é seguida por investigadores menos probos, porquanto exige muita energia, perseverança, dispêndio considerável de tempo e uma competência específica. Optam, na verdade, com alguma frequência, por repetir aquilo que já foi dito e redito, nem sempre com proficiência, acrescente-se.

Com a presente obra, Adelto Gonçalves revela honestidade intelectual, atributo igualmente notório em outras obras que assinou. A consulta de inúmeros documentos inéditos permitiu-lhe corrigir erros que a historiografia tradicional cristalizara e abriu novos horizontes relativamente à interpretação da natureza do colonialismo português e à forma como São Paulo estava estruturada.

Adelto Gonçalves: um dos mais importantes pesquisadores brasileiros | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Adelto Gonçalves, natural de Santos, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana, tendo-se doutorado em Literatura Portuguesa, pela Universidade de São Paulo. Leccionou nas Universidades Paulista (Unip) e Santa Cecília (Unisanta), bem como no Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte, Santos), e Centro Universitário Amparense (Unifia, Amparo). A sua actividade estende-se, também, desde 1972, ao jornalismo, tendo colaborado, entre outros periódicos, em “O Estado de S. Paulo”, “A Tribuna” (Santos), revista “Época” (São Paulo), “Revista Vértice” (Lisboa), “As Artes entre as Letras” (Porto), “Pravda” (Moscovo) e Jornal Opção (Goiânia), desempenhando, actualmente, o cargo de assessor de imprensa na área empresarial.

A cultura brasileira e a cultura portuguesa devem muito ao labor de Adelto Gonçalves, graças à sua extensa e relevante obra, que se espraia pela análise de poetas consagrados como Bocage, Tomás António Gonzaga, Machado de Assis e Fernando Pessoa; pelo ensaio histórico, como “Direito e Justiça em Terras d’el-Rei na São Paulo Colonial” e o texto agora em apreço; pelo romance e o conto (“Os Vira-Latas da Madrugada”, “Barcelona Brasileira” e “Mariela Morta”). É ainda de referência obrigatória a crítica literária, que mantém há anos, com regularidade pendular, dando a conhecer, em múltiplos periódicos, obras de autores maioritariamente brasileiros e portugueses, contribuindo, deste modo, para a formação e a orientação de inúmeros leitores.

A sua competência e o seu magistério têm merecido o reconhecimento de várias entidades e instituições, que lhe atribuíram galardões. Recordemos alguns: Prémio Fernando Pessoa, da Fundação Cultural Brasil-Portugal, por “O Ideal Político de Fernando Pessoa”; prémios Assis Chateaubriand e Aníbal Freire, da Academia Brasileira de Letras; Prémio Ivan Lins de Ensaios da União Brasileira de Escritores e da Academia Carioca de Letras, por “Gonzaga, um Poeta do Iluminismo”, que constitui a sua tese de doutoramento.

Em suma, eis uma obra seminal, redigida num estilo límpido, profusamente anotada, que corrige teses erróneas, problematiza e reequaciona um período determinante da história do Brasil e de Portugal, confirmando, outrossim, a actividade singular de um investigador com créditos há muito firmados.

O livro

“O Reino, a Colônia e o Poder” (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas) contém prefácio do historiador inglês Kenneth Maxwell e apresentação do historiador Carlos Guilherme Mota, professor da USP.

Daniel Pires, professor, licenciado em Filologia Germânica, é doutor em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa e diretor do Centro de Estudos Bocageanos, de Setúbal. É autor de “Fábulas de Bocage” (2000), “Bocage: a Imagem e o Verbo” (2015), “Padre Malagrida: o Último Condenado ao Fogo da Inquisição” (2012), “O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida” (2013), “Dicionário da Imprensa Periódica Portuguesa no Século XX” (1996), “Dicionário Cronológico da Imprensa Macaense no Século XIX” (2016) e de ensaios sobre Camilo Pessanha, Wenceslau de Moraes e Raul Proença. Foi responsável pela edição da Obra Completa de Bocage, publicada pela Edições Caixotim, do Porto, entre 2004 e 2007. Organizou as Obras Completas de Bocage: Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, publicadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de Lisboa, em 2017.