Deste que é considerado o maior poeta português pós-Fernando Pessoa, sabe pouco o leitor brasileiro, como de resto de toda a literatura de nossos conquistadores. Herberto Helder se impõe ao leitor que desejar romper “o isolamento”, este “desconhecimento mútuo” que separa Brasil e Portugal, no dizer do professor e poeta Claudio Willer.

Herberto Helder (1930-2015). Reprodução de JPN_Portugal (c)Alfredo Cunha

É preciso dizer bem mais do que os dados biográficos, pois que disso bem se ocupam os enciclopedistas, como muito se exala do acervo de excelentes notícias críticas sobre o poeta em Portugal[i]. É preciso dizer bem mais do que o número de livros que o poeta legou ao mundo. Para além da biobibliografia, há o homem: suas dores, seus anseios, seus delírios e a razão de sua poesia. A Herberto Helder aplicar-se-ia, com baixo risco de erro, o dito de Rimbaud: “o poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e deliberado desregramento de todos os sentidos“.

De uma vida de 84 anos, sabe-se que Helder foi, dentre muitos ofícios, sobretudo poeta. Deixou uma obra imensa que era sempre recebida com avidez pelo público leitor em seu país, não se dando o poeta aos rituais da “convivência sócio-literária”. Era, principalmente, um recluso, um homem que pouco ou nunca se apresentava em público nem se fazia mercadejar, por fotografias ou aparições contínuas – as poucas fotos em preto-e-branco vêm do clique de Alfredo Cunha.


Manuscrito e prova de poema de Herberto Helder. Reprodução do arquivo digital na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) via Luís Miguel Queirós, em www.publico.pt

O que dizer de Helder? quando se sabe que o poeta é parte já do cânone da poesia em língua portuguesa, sendo considerado por muitos críticos o maior poeta depois de Fernando Pessoa? O que dizer se isso é apenas o que se deve considerar diante do cenário da poesia feita em Portugal; quando se sabe que de nós, brasileiros, Portugal dista mais do que as regulamentares 4040 milhas náuticas?

Ora, em primeiro lugar, ao exercer o ofício de cronista, dentro de uma proposta claramente formulada de uma nova crítica de rodapé, cabe esclarecer a escolha feita de um livro (o que exclui muitos outros – e aí está o cerne da operação semanal feita pelo cronista, na linha do que João Cezar de Castro Rocha chama de “esquizofrenia produtiva” – um rodapé de jornal com uma pitada de teorização, consciente de que é inútil (ou infrutífero) alimentar “a nostalgia por uma pretensa época de ouro do jornalismo literário” – declaro, sim, que não desejo tornar-me vítima desse tipo de “projeção equivocada” (Castro Rocha).

Entretanto, entendo que de tal forma perdemo-nos no caminho, na relação com a literatura feita em Portugal; tanto deixamos de fruir da literatura feita fora do Brasil, tanto se nos perdemos no caminho, seja na Academia, seja no (quase extinto) “jornalismo cultural”; que rondar o melhor das duas arenas, retirando de melhor o que houver em ambas as vertentes críticas seja talvez a atitude mais indicada, principalmente para quem tem pouco tempo.

Sei que estaria (estou?) praticando um suave exercício de “anacronismo deliberado” (Castro Rocha) –, mas entendo-o desde a mirada de João Cezar, de que este é visto “não como um problema hermenêutico” e sim como “uma condição existencial”.

O fato de que a leitura dos autores portugueses foi recentemente retirada de nosso currículo do ensino médio parece-me lamentável, mas não menos do que um fato isolado, ao que se juntam outras duas ações deletérias a preceder a decadência atual e que foram: a retirada da Literatura Universal do ensino médio e a pá-de-cal da aniquilação do gosto pela leitura da literatura de língua portuguesa na sua origem de expressão primeira – Portugal! A esses traumas se somam a exclusão do ensino do Latim nas escolas e o desaparecimento das leituras em sala-de-aula de autores estrangeiros. O que se nos oferece no lugar disso? a leitura (oitiva) de letras de música e leitura compulsória de autores africanos…

Torna-se, assim, verdadeira a tese de Claudio Willer, que afirma peremptório:
“Pode-se falar em relação insular, marcada por um considerável desconhecimento mútuo, entre as literaturas do Brasil e Portugal de hoje, mesmo ressalvando a existência de especialistas, iniciados e outras modalidades de bons leitores. Importantes contemporâneos brasileiros circulam mais em Paris do que em Lisboa; reciprocamente, grandes nomes da literatura portuguesa também são mais conhecidos em países europeus do que no Brasil.” 

Deve o cronista, ao usurpar o papel do crítico neste rodapé, fazer bom uso da crítica em uma das últimas trincheiras que nos restam no jornalismo cultural do país; sim, devo fazer escolhas que relembrem a força das origens, sendo fiel à formação que, mesmo a um ex-aluno de Matemática e Física, foi dado tê-la.

Eu sou um que expressa gratidão aos responsáveis por minha formação, ainda que os longos trinta anos de comércio tenham por demais tentado me desviar do caminho e tornado precário o exercício atual da crítica.

Duas tentativas de uma poesia completa, sempre em revisão por Helder: sua poesia quase completa

Voltemos, sem mais excursus, dileto leitor, ao poeta português, que merece e deve ser lido. Nestas antologias que tenho sobre a mesa[ii] encontrará o leitor boa parte dos livros publicados na Porto Editora, por isso não se trata da poesia completa de Helder. Devo à gentileza do poeta e psicanalista Ítalo Costa a posse da mais recente destas edições, que ele me trouxe de Portugal, depois da tentativa infrutífera de comprá-la via site de uma livraria lusitana.


“HELDER é um autor que, inclusivamente, pode-se dizer que marcou a própria poesia, marcou o próprio género poético. Para um autor da minha idade, não faz sentido escrever poesia ou qualquer género literário em Portugal, ignorando a obra de Herberto Helder, porque é realmente uma obra incontornável, pela sua originalidade e universalidade” (José Luís Peixoto, poeta e dramaturgo português)


Mas nem se há de desejar a poesia completa, que em Helder é um tsunami. Não há como ler todo o Herberto Helder “de uma sentada” pois a poesia dele foi “fundada na vida inteira”. Lembra-se o cronista de uma solução genial para explicar a impossibilidade da poesia todo o tempo, por toda a vida, numa frase do poeta Ivan Junqueira, num diálogo inesquecível com o amigo maranhense Ferreira Gullar[iii]: “Você não pode a vida inteira estar escrevendo poemas – isso é impossível! O poema aparece na sua cabeça um pouco como um relâmpago dentro da noite; agora, você viver de relâmpagos vinte e quatro horas por dia é impossível.

Pois bem, foi este “relâmpago” de Junqueira (“o espanto” de Gullar) a sina do poeta português por bem mais vezes ocorrido do que na vida do italiano Leopardi (autor de quarenta Cantos, número que bastou para que fizesse parte do cânone ocidental); do poeta brasileiro Dante Milano, que não escreveu mais de 150 poemas; Baudelaire, 167; Eliot teria escrito cerca de uma centena… Como explicar, pois, que Herberto Helder tenha escrito tanto e conseguido manter o nível até o final da sua vida de escritor?

“É o grande poeta português do século XX”
(Manuel Gusmão, professor, poeta e crítico português)

A resposta parece vir da volição do poeta à “Máquina lírica” (com “comunicação acadêmica”):

[…]
o silêncio de tudo no mundo inteiro:
et caeteramente vosso inteiro:
herberto helder:

                                                               em janeiro:
mil novecentos e sessenta e três.

                                                                                    1963.”

Mas, afinal, contra qual silêncio se bate o bardo português?
– Contra “o texto assim coagulado, /alusivas braçadas/de luz no ar fotografadas respirando,/a escrita, pavorosa delicadeza a progredir,/enxuta, imóvel gravidade…” o poeta se bate – ei-lo assim consciente navegando por uma superfície desconhecida, áspera, pavorosa e, mesmo assim, fulgurante:

“tudo se espalha num impulso curvamente
branco, a crista aberta com silêncio
fulgurante, a imagem que agoniza,
e logo o tempo caído
num espaço sem tempo, freme
a fonte algures simultânea, e a voz
num sulco de sangue criminal,
sobre os pulmões o rítmico decalque carbonizado,
[…]
“gota a gota se destila a droga nesta coisa viva,
a dor de ter um rosto a tremer
no mundo, entre planos de noite e planos
de luz parados sobre a agonia,
águas de Deus correm numa paisagem
geral e obsessiva, e no terror de uma brancura explosiva,
a morte ao alto, fixa
(1970).”

Entre nós por primeiro sorveu e publicamente se expressou sobre essa poesia rimbaudiana o poeta gaúcho Carlos Nejar já o havia notado nos idos de 1983 em sua antologia da “Poesia portuguesa contemporânea”. São Paulo: Massao Ohno / Ropswitha Kempf. Assim prossegue Helder, surpreendo até à “Morte sem mestre” (2013), e não nos deixa sem um baque, um choque – um espanto:

e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,
vou morrer como um cão deitado à fossa

[…]
“não me queixo e nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,
ou então de já mais não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
– e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!”

E serviria “a bilha de gás” para Helder como a estricnina serviu a outro poeta português, Mário de Sá-Carneiro, para quem o arseniato de estricnina põe fim ao corpo e a alma lhe despacha à Eternidade, a mesma que Herberto Helder antevia inserida no quotidiano – ou, assim lhe asseguravam os astros: “uma bilha de gás,/a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que/a habita e move” – daí a queixa que parece inerte na poesia, aquela mansidão do que se sabe vivo apenas pelo condão da palavra escrita – o homem, a criatura finita que se vai para o éter: o “corpo-e-alma” que aqui o cronista torna gêmeas coisas de um ser dividido, o albatroz e seu voo inusitado “que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!” dizia Baudelaire – o que para o cronista é o mesmo que tivesse de dizê-lo a respeito de Herberto:

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.”
(Baudelaire, trad. Jamil Almansur Haddad)


Também lhe conferiram o epíteto de “experimental”. Experimental, ou de vanguarda, é, em seu tempo, toda literatura verdadeira. Toda poesia que se inventa, que se não copia ou se molda nas fôrmas e fórmulas sovadas: em português, desde os cancioneiros. E Helder assume esse caráter quer no irracionalismo, nas veredas vivas da paixão, do delírio, da tumultuosa entrega sensorial presentes em toda a linguagem de [seus] livros…”
(Mauro Gama, em “Ou o poema contínuo”, 2004. Ed. brasileira, 2006)


Alexandra Carita, em ensaio para o “Expresso” de 2010 (republicado no dia do anúncio da morte do poeta, em março de 2016) diz que: “…Herberto Helder expõe os seus fantasmas preferidos. A morte, o crime, o suicídio, o apocalipse, o génesis, o corpo (matéria orgânica sublime na capacidade de se metamorfosear), o ritual, a alquimia (assentes num culto do mundo vegetal maçónico, dirão alguns), o canto, a voz que o canta, a palavra, obsessivamente a palavra (corpo de trabalho do artesão/ poeta em tudo semelhante à madeira ou à pedra esculpidas à mão), a palavra monstruosa, tão aterradora quanto o amor que atravessa toda a sua obra. Paixão e sangue aproximam-se da salvação no messianismo herbertiano onde a destruição (da obra) é a única saída, transformada, porém, numa exaltação cada vez mais extrema da violência.”

Dentre os demais brasileiros que escreveram sobre o poeta, agrada-me o que o poeta Jorge Henrique Bastos, embora não concorde um décimo com o que Bastos pensa do país e da política; este paraense que viveu e publicou em Portugal por um período, resumiu bem o modus operandi de Helder:

“Repetiria as palavras de Jean-Pierre Richard ao dizer que a poesia “est aussi le plus souvent travail, souffrance” [a poesia é também o mais das vezes trabalho e sofrimento] (em “Onze études sur la poésie moderne”, 1964).
Nada mais correto para explicar algo deste poeta. No panorama da poesia de língua portuguesa aparecida nos últimos quarenta anos, é difícil encontrar qualquer paralelismo com a sua obra. Herberto Helder não precisa reivindicar um lugar, pois ele esteve sempre preenchido. E hoje, mais do que nunca, é o momento de reconhecer a exuberância deste enorme poeta genuinamente barroco, constelar.”

É, no entanto, de Claudio Willer[iv] o grande difusor da poesia de Herberto Helder entre nós, a melhor avaliação do prolífico poeta português que é situado por Willer na “linhagem dos poetas visionários”; mas, creia-me, dileto leitor, nada substitui a ida à fonte Herberto Helder, e há que beber dessa água salobra, inexata, quase puro barro, mas barro humaníssimo que só se descobre fruindo a poesia inteira, sem medo, corajoso diante do constrangido rigor do que bate à pedra na frente do leitor, com um sem-cerimônias inédito. Mesmo assim, há que se ler Herberto Helder[v], amigo leitor, para ver-lhe a fulguração de um poema-voo, do limbo ao nimbo, dos seus atormentados oitenta e quatro anos à eternidade da poesia e pela poesia.
            O POEMA (excerto)

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
[…]
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

– E o poema faz-se contra a carne e o tempo.

E por fim, deixo-lhes como mais um excerto, para que se desejem os espólios, a propósito de inéditos de Herberto Helder, como bem relata Luís Miguel Queirós no jornal Público[vi], um testamento se expõe em “Poemas canhotos” e “Letra aberta”, obras póstumas que a viúva do poeta mandou publicar recentemente:

“eu cá acho que sim,
acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável,
um poema que amadurou em mim ao longo de oitenta anos (…)
ah, aceitem lá a pequenez geral da minha vida
e do meu nome obscuro,
e o quão honesto sou odiando tudo isso”.

Adalberto de Queiroz, 62, é jornalista e poeta. Autor de “Frágil Armação”, 2ª. ed., Caminhos, 2017 e “O rio incontornável”, Mondrongo, 2018.

[i] Website sobre Herberto Helder em Escritas.org, consultado em 25/1/2018. https://www.escritas.org/pt/l/herberto-helder

[ii] HELDER, Herberto. “Poemas completos”, 1ª. ed., Porto (Portugal), 2014. 757 pp. Do mesmo autor, “Ou o poema contínuo”, São Paulo: A Girafa editora, 2006, 535 pp.

[iii] Documentário da Academia Brasileira de Letras (ABL) no YouTube cf. link consultado em 26/01/2018: https://www.youtube.com/watch?v=gZa2AkDVc2k&t=1402s

[iv] WILLER, Cláudio. Blog do Willer com mais de dez referências e suas variações no link consultado em 26/01/2018: https://claudiowiller.wordpress.com/?s=herberto+helder

[v] Sobre a prosa de Herberto Helder, recomendo o artigo do professor Adelto Gonçalves no site do Jornal de Poesia, Adelto que é também colunista deste jornal, link consultado em 27/01/2018: http://www.jornaldepoesia.jor.br/agonçalves9.html Todas as demais citações não anotadas neste rodapé, são de HELDER, Herberto. “Ou o poema contínuo”, São Paulo: A Girafa editora, 2006.

[vi] QUEIRÓS, Luís Miguel, em Link do website de Público, consultado em 27/01/2018: https://www.publico.pt/2016/03/25/culturaipsilon/noticia/herberto-helder-um-poeta-que-so-guardava-o-essencial-1727150

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