O drama patriarcal de Raduan Nassar e Osman Lins ganha nova voz na literatura brasileira

12 março 2016 às 10h52

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Maurício de Almeida prova ser um autor marcante, ao examinar os efeitos contundentes do retorno inesperado de um pai à família a qual abandonou

Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
Há uma visão romântica de que escrever um livro é lançar luz sobre uma ideia. Contudo, nem todas as histórias ocorrem sob a égide do alvor. Há enredos que nascem e ganham forma entre o desmaio vespertino das horas e a total desclaridade. Há autores que necessitam se acolher na madrugada alta e esquadrinhar a escrita feito noctâmbulos de uma literatura que viceja na sombra da própria sombra.
Em “A instrução da noite”, Maurício de Almeida opta pela travessia de um território umbroso. O romance é um corte de dois tempos. O desenrolar cronológico das horas mais escuras de um dia e um passado que se arremessa com brutalidade contra este presente, causando uma permanência atordoante, um desmantelamento temporal onde as lembranças coexistem com o imediato.
O motivo desta fratura é o regresso imprevisto de um pai à família que abandonou igualmente sem explicação. O abalo do reaparecimento desata um fluxo caudaloso de sentimentos desenterrados, o afogamento numa mágoa nutrida pelas consequências incontornáveis daquela ausência e, ademais, da dúvida sobre a real motivação do retorno muitos anos depois de completa incomunicabilidade.
Ao filho cabe a condução da trama. Um homem moldado por privações, obrigado a abrir mão da própria vida para responder pelos deveres do pai. Nele está a consciência narrativa. Uma voz dotada de uma inflexão sufocada e sufocante, que tentando ser ouvida por Teresa, a irmã que há tempos fugiu de casa, faz desta impossibilidade o álcool para enfrentar o caos que se estabelece dentro de si.
É dessa jornada anímica, incursionando por entre resgates da infância e escombros do esboroamento familiar, que o personagem compõe um retrato doméstico onde todos são “fantasmas que não se resolvem com a morte e tentam aplacar o ressentimento assombrando-nos uns aos outros”.
O pai constituído de uma “espécie de força inescapável”, da qual, contrariados, todos orbitam ao redor, envolvidos por um estado de tensão. A mãe apática, de uma nulidade doentia, como que partidária do alheamento. A irmã Teresa, pela qual o narrador guarda um misto de inveja e afeto. E Alice, a esposa, que devaneia sentidos para uma existência solúvel feito a chuva persistente que singra a noite.
Tocando-os de maneira física e subjetiva, o personagem caminha por esse espaço que abriga outros e os desaparece, sendo ele próprio um estrangeiro desta condição, um espectro incapaz de traduzir suas ações diante do inesperado reencontro e da nova porta que se revela disponível, a qual oferece uma chave de muitos dentes, uma chance para seguir o curso da nova manhã ou se manter no rumo insone do ontem eterno.
Maurício de Almeida, que venceu o Prêmio Sesc de Literatura de 2007, com a coletânea “Beijando dentes”, retoma uma temática que tencionava alguns daqueles contos, na qual a relação entre entes familiares incorria de situações e de sensações adversas, do desalento à melancolia. A prosa seca e fluente, mobilizada por uma tessitura singular, inventiva, formada por intervenções e comentários incidentais, recebe um cuidado especial, maduro, uma preocupação pelo requinte das palavras e o encaixe das frases, atingido, assim, a densidade poética, uma beleza imprópria.
Pois, se para o leitor se torna irresistível o ritmo e a força do relato, o romance explora o mais elementar dos conflitos humanos, o drama patriarcal em que, de modo simbólico ou não, o filho é levado a assassinar o pai para encerrar um estágio preliminar da vida, vencer o duelo com seus medos, suas angústias, suas frustrações, escorado por uma perspectiva de mundo igualmente pueril e adulta. Tramas que se tornaram referenciais nas literaturas de autores brasileiros como Raduan Nassar, Osman Lins e Lúcio Cardoso.
No entanto, as semelhanças param na preferência do tema. Maurício de Almeida não é um imitador, longe disso. Tem uma voz singular e potente que, mesmo no segundo livro, já deixa uma marca, o reconhecimento de um estilo próprio, inconfundível. Um escritor que imprime em suas páginas uma rutilância artística, mesmo ao se embrenhar na mais profunda escuridão.
Leia um trecho do romance “A instrução da noite”, do escritor Maurício de Almeida

Quero acender um cigarro e ter ao menos a proteção da nicotina e o acolhimento intermitente e diminuto da brasa para não me abater nessa transfiguração confusa de tudo que habita esse quarto
(a cadeira dançando infestada de sombras, o armário exibindo as roupas penduradas em cabides, um exército de fantasmas estampados, espectros de lantejoulas e miçangas)
enquanto ando esmerando calma, certeza que um pouco de luz minguaria o breu reinventando terrores, dando-lhes proporção. No entanto, toldando-me no silêncio e na prudência de ações controladas, fecho a cortina, tiro minha camiseta e a estendo ao pé da porta para que nenhuma fresta me faça possível aos olhares atentos dessas pessoas que desconheço nos retratos espalhados por todo o quarto
(as fotos que Alice faz incessantemente como se estivesse em busca de alguém)
pois sei que me julgam em desconfiança não só por atrapalhar o sono de Alice, mas também devido aos movimentos que acontecem ríspidos por conta da ansiedade com que busco algo que me afeiçoe e no qual eu me reconheça. Dedicado outra vez a vestígios, procuro neste quarto um gatilho de memória que me convença ser o homem feito que sou e prove que estou vivo entre esses tantos fantasmas que é o pai me culpando pelo dinheiro que eu não tenho, a mãe me negando cuidados, Alice me ignorando num sono, você me assombrando em abandonos.
Palmilho o tropeço num par de sapatos, apalmo a lisa planície do tampo da escrivaninha povoada por pequenos objetos, um edifício regular de livros, a madeira fria da cadeira, a reconfortante aspereza de tecidos postos sobre seu respaldar. Entretanto, as roupas não têm meu cheiro, os sapatos não cabem nos meus pés, desconheço os livros que toco e os outros que quase não vejo mas que repousam enfileirados na estante, amparados por uma carranca enfezada, separados por um largo peixe talhado em madeira e um ramalhete de flores secas. Perdido nessa empreitada ridícula, me aventuro em outros lugares e, quase ao lado da cama, descubro uma bolsa que boceja os papéis desorganizados dentre os quais encontro uma máquina fotográfica que pego com raiva. Detesto o olho arregalado dessa lente, Teresa, porque há muito tempo Alice se punha a me fotografar
– sorria
e meu rosto compunha retratos desagradáveis
(traços desarmônicos, olhos desalinhados, um sorriso no canto da boca)
retratos que pioravam à medida que ela se impacientava, Alice por trás da máquina já quase a contragosto, eu fingindo naturalidade até brilharem dois ou três flashes e ela balançando a cabeça
– não ficaram boas
almejando outros rostos na métrica perfeita dos ângulos certos, olhos e bocas em sorrisos fáceis, ela encantada com feições graves, barbas por fazer moldando mandíbulas, olhares propondo enigmas, esses estranhos que ainda me observam. Desalentado por jamais satisfazê-la, sem esforço imaginava
(como agora imagino)
Alice satisfeita ao esquadrinhá-los, ela dizendo a eles todos
– sorria
com a boca entreaberta como nos autorretratos que ela tem numa caixa ao alto dos vestidos, um maleiro repleto de Alices com os ombros nus sugerindo nudez, uma sedução implacável que nunca vi senão nessas fotos que por vezes roubo, o prazer ilícito de tê-la em poses e olhares. Porque, numa impertinência do tempo, restam a deterioração do que fomos e mais nenhuma garrafa de uísque nem a dedicação dela sobre mim em toques, só a boca desferindo palavras intransigentes como se mordidas, os olhos dela não procurando mais fotos no meu rosto como se me previssem desfigurado e confuso, nenhum retrato meu pela casa.
Aos pés da cama, inflamado pela rejeição, observo a silhueta dela dormindo indiferente a tudo que aconteceu e me sinto estúpido por essa vontade de acordá-la em violência, enchê-la de gritos sujos de assertividade, num impulso doentio pegá-la aos chacoalhões, pois sei que esse arroubo nada mais é que uma inevitável esperança de compreensão e afeto: o ímpeto de acordá-la deve-se ao fato de imaginá-la tomando minhas mãos para beijar escoriações e dizer
– calma
ajeitando-se na cama com o propósito de me aceitar no colo, os dedos traçando caminhos aleatórios no meu cabelo, eu aninhado a ela sentindo segurança ao ouvi-la
– calma
indefinidamente. Risível, eu sei. Que pode Alice além de me aturar por não ter aonde ir ou quem a sustente, ela, que depois daquela noite de uísques e perversidades pediu-me para ficar porque não tinha como pagar o aluguel, o pai doente em sei lá que cidade, a mãe morta ou perdida no mundo? E mesmo ciente dessas contrariedades, envenenado por impulsos diabólicos e movido pela possibilidade de tê-la devota, escapa-me boca afora
– Alice?
e de pronto fico arrependido ao vê-la virando-se a mim e aquele ar ao redor dos olhos que é um sarcasmo duvidando da minha virilidade, ela menosprezando-me ao chão como se eu implorasse uma atenção há muito perdida, absolutamente oposto à segurança do siso de mandíbulas e barbas, aqueles estranhos.
Repreendo-me na expectativa de que ela não acorde, a respiração profunda, as mãos arranjadas em oração sob o rosto, Alice volta a dormir. Quanto a mim, conformado de que jamais encontrarei coisa alguma que me comprove vivo, o homem feito que nunca fui, ressinto ao aceitar que não adiantaria desnudar o armário de roupas, destruir as estantes aguentando os livros e revirá-los num esforço, esse tormento só catalisaria a claridade que há de me expor enlouquecido e aniquilado. Por isso, malgrado o inoportuno dessas vontades, tiro a roupa, deito desperto e distante do sono e, à sorte de desfechos, me dedico atento ao delicado rumor das árvores chovendo depois da chuva.