O camelô de canetas e causos mais
14 setembro 2020 às 09h57
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Converso com o caneteiro, que reclama que vende pouco… e ele foi saindo, cabisbaixo, como quem queria arrancar os olhos para chorar
Gabriel Nascente
Acontecências de acontecer acontecendo. Amanhece. Inda o sol ronrona em seu divã invisível de nuvens. Quero dizer: ninguém acionou ali, no bojo daquelas alturas, a ignição do grande dínamo da luz. Mas amanhece. E a rotina começa a se mexer, levada pela imposição de suas tarefas. Hora pra isto, hora praquilo. Esticar as pernas, levantar-se, abrir gavetas, e vestir-se de trajes olímpicos adequados aos exercícios matinais das caminhadas, no frescor das auroras; sem antes, todavia, ocupar-se de rápidas leituras de algum poeta ou de filósofo, até à escova de dentes, um gole quente de café, imiscuído ao leite e à ternura, abrir a porta e tibum: rua, comprar pão.
Ufa! O céu vai clareando. Abro o portão do Residencial Rio das Garças e dou de cara com o vendedor de canetas. Que figura! Que resistência! Este octogenário emigrado lá das Cajazeiras do Rolim, sertão bravo da Paraíba, berço-terra de Augusto dos Anjos, o poeta defunteiro, cientista dos adjetivos da morbidez, que tanto me impregnei dele, na juventude.
E que nome jactancioso tem o caneteiro: José Estolno de Sousa, com mais de 40 anos na praça de Goiânia vendendo seu produto. Homem de muitas águas e divinamente rodado pela prática desse comércio, de humildade monta, pois tem canetas de todo preço, de 1,00 a 20 reais — isto o popularizou como o “Caneteiro da Assembleia”.
— Antigamente, relembra ele, eu vendia de uma só vez até mais de três mil canetas pra um só deputado. Hoje, não. Se vendo uma, apenas uma, dou graças a Deus. É que a soma dos janeiros sobre o coro dos meus costados já ultrapassou a fronteira dos 85. É isto daí, meu filho… E foi saindo, cabisbaixo, como quem queria arrancar os olhos para chorar.
Eu desci aquele pedaço de rua, com a cabeça abarrotada de nostalgia. Veio a pandemia e o vendedor de canetas sumiu. “Ninguém o viu mais”, diria Kafka, em seus diários de Praga.
Tão poética profissão escafedeu-se do mercado.
Ah, que vazio enorme fendeu minha alma. O camelô de canetas sumiu. Ele tinha uma vitrine ambulante no coração, mas só vendia canetas.
Lutar contra o mal é lutar contra nós mesmos, disse Octavio Paz. A comédia humana continua. E nós somos os seus protagonistas, haja sol, trovões, primaveras ou tempestades.
É recente o que eu vivenciei, sob o tórrido calorão de uma tarde insuportavelmente opressiva e escaldante, quando, súbito, aproximou-se de mim, uma obesa criatura, sacudindo as papadas de sua gordura na barriga e no rosto; pele queimada de sol e ofegante. E todo empapado de suor, ele vinha até a a praça, empurrando um carrinho de mão, com o qual vendia água de coco, gelada. Esfregou a mão na testa e enxugou o vinagroso suor que lhe escorria pelas faces, às três da tarde em ponto, e desabafou:
— É, companheiro, isso aqui é o fim do mundo. Não está com nada não. Eu vou é vazar-me daqui. Me mandar de volta à terra dos meus pais. Eu tenho uma costela quebrada; e já não aguento mais empurrar esse carrinho, aqui por essas ruas de Caldas Novas, quentes como o diabo. Também não suporto mais esperar a aposentadoria do INPS. pois já se vão mais de cinco anos, e nada. É uma… Eu trabalhava numa firma de construção civil. Era motorista e sofri um acidente de trabalho. E agora estou encostado, nesta merda de pobreza.
Entrementes, salto-me para um fragmento da história literária.
Filho de pai analfabeto, comerciante e luveiro, Shakespeare foi um satírico, bronco, agiota, aprendiz de açougueiro; ganhou dinheiro trabalhando em teatro, emprestava-o e depois perseguia seus devedores “quando deixavam de lhe pagar pontualmente”. No entanto, “Deus dobrou a criação” ao criador este gênio da literatura ocidental.
No início de sua carreira, Shakespeare foi, por inúmeras vezes, ator de suas próprias peças, vivendo papéis de protagonista, nos personagens de Tímon (“Tímon de Atenas”); Hamlet (“Hamlet”) e Próspero (“A Tempestade”). Prova-os isso os testamentos lavrados por ele em cartório.
E assim eu vou levando minha vida enterrada nesta montanha de papéis.
Gabriel Nascente é cronista do Jornal Opção.