Obra seminal de autor francês é criadora de uma linguagem que flerta com o universo cinematográfico, que a usa para citações interessantes, embora pequenas, enquanto espera releitura digna de seu porte

“A Incrível História de Adaline”: William (Harrison Ford) reencontra Adaline (Blake Lively), mas para ela o tempo não passou, como não passou para a estrela batizada em seu nome

Gismair Martins Teixeira 
Especial para o Jornal Opção

Entre os anos de 1913 e 1922, o escritor francês Marcel Proust produziu, no sentido denotativo e conotativo do termo, uma colossal obra composta de sete volumes enfeixados sob o título geral de “Em Busca do Tempo Perdido”, cujo último volume sairia no ano de 1927. Embora o termo “gênio” cause arrepios em muitos intelectuais e pensadores de plantão, é difícil pensar em outra palavra que melhor defina Proust diante de sua realização literária e da cultura como um todo.

Um exemplo rápido de seu poder criativo e penetração de espírito pode ser referenciado quando especialistas em sua obra apontam que Proust apresenta, nas memórias do narrador de seu longo romance – que guardam estreitas simetrias com biografemas do autor –, considerações bastante aproximadas da formulação freudiana em torno do complexo de Édipo, caracterizado pela paixão que o menino desenvolve em relação à figura materna. A narrativa que contempla essa faceta se encontra nas páginas iniciais de “O Caminho de Swann”, o primeiro volume da heptalogia proustiana, e teria sido escrita sem que o autor tivesse conhecimento dos postulados de Sigmund Freud.

No constante diálogo entre a literatura e o cinema, através da adaptação que este último faz de importantes clássicos literários, “Em Busca do Tempo Perdido” aguarda uma releitura cinematográfica digna de seu porte. Infelizmente, outras obras-primas literárias se encontram na mesma condição. Embora, porém, o cinema ainda não tenha produzido uma versão relevante da obra do escritor francês, em diferentes produções se nota a intertextualidade, ora explícita ora implícita, entre roteiros mais ou menos elaborados e recortes narrativos dos sete volumes de Proust, o que parece configurar uma homenagem ao escritor.

Tempo e sabor

Gêneros cinematográficos diversos prestam, assim, sua homenagem ao grande literato francês. No longa de animação de 2007 da Pixar, intitulado “Ratatouille”, por exemplo, a narrativa traz como personagem principal um rato, Rémy, que possui um dom incomum para a culinária. Seu talento excepcional o credenciaria a ser o vencedor de qualquer versão de Masterchef do momento. Utilizando-se de um humano como parceiro, o camundongo cozinheiro resgata o nome de um tradicional restaurante parisiense que se encontrava decadente.

A cena proustiana da película ocorre quando Anton Ego, o maior crítico de culinária de um respeitado jornal da cidade, vai ao estabelecimento avaliá-lo. Ao levar à boca o primeiro bocado de um prato especial preparado pelo ratinho, o sisudo e temido homem é conduzido à infância em seus melhores momentos pela magia do sabor e do odor da iguaria, vendo-se próximo a sua mãe num amplexo de ternura.

A narrativa homenageada pelo roteirista se encontra nas também páginas iniciais de “O Caminho de Swann”, quando o narrador de Proust degusta uma madeleine embebida em chá. Com a palavra, o narrador:

“Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreendê-la?”

Em “Ratatouille” este entrecho narrativo é apresentado da melhor maneira possível em imagens que remetem à prosa poética do narrador proustiano. Seu desfecho efusivo faz que o severo crítico se dobre ao inusitado de que a receita fora preparada por um camundongo expert em culinária, reforçando um dos bordões apresentados ao longo da película, que afirma que qualquer um pode cozinhar bem.

Relendo Proust

No ano de 2015 uma narrativa romântica singular ganhou as telas. O filme “A Incrível História de Adaline” apresenta ao espectador um roteiro bastante peculiar. Dirigido por Lee Toland Krieger e estrelado por Blake Lively, Michiel Huisman e Harrison Ford, a produção estadunidense teve como roteiristas J. Mills Goodloe e Salvador Paskowitz. A narrativa apresenta de início em sua trama uma jovem da primeira metade do século 20, Adaline, que dirige por uma pequena estrada escorregadia devido a uma fina camada de neve.
Ela perde o controle do carro e cai num pequeno riacho próximo à ponte. O céu carregado indica que vai chover forte. A jovem se esforça para não afogar dentro do veículo, mas perde a batalha, falecendo. Neste momento, um relâmpago atinge a carroceria metálica de seu automóvel, sendo canalizado para o corpo da jovem desfalecida, o que funciona como um gigantesco desfibrilador que a reanima. Mais que isto. Um narrador ao fundo informa que uma alteração molecular ocorrera em seu DNA, o que seria determinante para a continuidade da narrativa.

“Embora o cinema ainda não tenha produzido uma versão relevante da obra de Proust, em diferentes produções se nota a intertextualidade com ela, ora explícita ora implícita”

Adaline é agraciada com um dom que faria a fortuna da indústria dos cosméticos: ela não mais envelhece. O roteiro se desdobra a partir desse eixo, com as peculiaridades óbvias suscitadas pela sua inusitada condição, tendo a sua temporalidade diluída pelas décadas que compuseram o século 20, embora este tenha sido menor na opinião do historiador Eric Hobsbawn. Exemplo disso é a situação da filha de Adaline, que com o decorrer das décadas assume o papel de avó da protagonista. Mas é no campo sentimental que a narrativa de “A Incrível História de Adaline” vai aproximar-se em nível intertextual da narrativa de Marcel Proust.

Adaline se enamora de um jovem estudante de medicina. No encontro em que ficariam noivos, ela contempla de longe, do banco traseiro de um táxi, o seu pretendente. Todavia, não tem a coragem de levar adiante o relacionamento, abandonando o rapaz sem dar a ele maiores esclarecimentos. As décadas passam. Instada pela filha, já com a aparência de uma possível avó, a protagonista resolve dar uma nova chance ao amor, pois estava sendo cortejada por um galante e culto pretendente.

Ao aproximar-se da família desse seu namorado, ela descobre de forma surpreendente que ele era filho do rapaz que ela deixara esperando no banco de uma praça com um anel de noivado. O antigo namorado fica estarrecido com a semelhança de Adaline com sua ex-amada. Ela assume para ele o papel de filha da quase noiva de outrora. No entanto, uma cicatriz que ele testemunhara formar-se na mão de Adaline em um incidente que envolveu a ambos revela a sua verdadeira identidade. Forçada pelas circunstâncias, a protagonista revela ao antigo pretendente a sua inusitada condição.

Adaline em Albertine

“Em ‘‘Ratatouille’, ao experimentar um prato especial preparado por Rémy, o temido crítico Anton Ego é conduzido à infância pela magia do sabor”

Ao brincar com o tempo, os roteiristas J. Mills Goodloe e Sal­va­dor Paskowitz parecem homenagear Proust através da leve narrativa des­sa produção cinematográfica. O antigo pretendente de Adaline, interpretado por Harrison Ford – os eternos Hans Solo e Indiana Jo­nes dos blockbusters hollywoodianos –, abandonara o curso de me­dicina e se tornara astrônomo. Seu feito mais notável, segundo seu fi­lho, fora a descoberta e o mapeamento da possível rota de um co­meta, que deveria voltar em determinada data, o que acabou não ocorrendo, para a sua decepção como profissional da astronomia.

O corpo celeste mapeado pelo antigo namorado de Adaline apresentaria em seu périplo celeste uma trajetória bastante singular pelo céu e seria de difícil cálculo matemático. Adaline acaba revelando-se, no fluxo e no contexto mais amplo da narrativa, como uma precisa alegoria do erro de astronomia de seu antigo pretendente. Ela seria o cometa metafórico que influenciara de forma bastante significativa a sua existência, numa precisa correlação com o conceito de alegoria, que em rápidas palavras dicionarizadas é definida como sendo o “modo indireto de representar uma coisa ou uma ideia sob a aparência de outra”.

Assim, a partir da definição dicionarista, a própria narrativa de “A Incrível História de Adaline” poderia ser entendida como uma alegoria cinematográfica de um recorte narrativo de Proust. Em “À Sombra das Moças em Flor”, o segundo volume de “Em Busca do Tempo Perdido”, o narrador apresenta as suas ilações em torno do amor e suas complicações quando reflete sobre sua paixão por um grupo de jovens moças que vira na praia, de cuja nebulosa emerge a figura de Albertine, que parece inspirar o nome da protagonista do filme norte-americano. Relata o jovem enamorado concebido por Proust:

“Ainda se fosse tão simples saber que no triste sábado era inútil insistir, que se poderia percorrer a praia em todos os sentidos, sentar-se à frente da confeitaria, fingir comer um doce, entrar na loja de curiosidades, esperar a hora de tomar banho, de ir ao concerto, a chegada da maré, sentir o pôr-do-sol, a noite, sem ver o pequeno grupo desejado. Mas o dia fatal talvez não voltasse uma vez por semana. Pode ser que não caísse forçosamente num sábado. ‘Talvez certas condições atmosféricas influíssem nele’, ou talvez lhe fossem inteiramente alheias. Quantas observações pacientes, mas não tranquilas, é necessário recolher sobre os movimentos aparentemente irregulares desses mundos desconhecidos antes que possamos estar seguros que não nos deixamos levar por coincidências, que nossas previsões não serão traídas, antes de deduzirmos as leis corretas, adquiridas ao custo de cruéis experiências, dessa ‘astronomia apaixonada’.”

Os termos em destaque na transcrição chamam a atenção para o diálogo que se estabelece entre o filme e a narrativa do autor francês. Não deixa de ser instigante a correlação existente entre a fala do narrador de Proust e a trama elaborada pelos roteiristas de “A Incrível História de Adaline” que a película apresenta ao espectador. Se foi coincidência ou inspiração, sem dúvida foram das mais felizes. Se foi uma homenagem, foi mais que merecida, uma vez que “Em Busca do Tempo Perdido” representa um monumento à arte literária.

Gismair Martins Teixeira é doutor em Letras e Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da SEDUCE-GO