Saga amorosa dos avós nos leva a um passeio por Minas e Portugal e serve de base para uma bela demonstração de resiliência

Marco Aurélio Nogueira

O jornalista Nirlando Beirão tem longa e vitoriosa trajetória na imprensa brasileira. Trabalhou na “Última Hora”, “Jornal da Tarde”, “O Estado de S. Paulo”, “Playboy”, “Veja”, “IstoÉ” e “Carta Capital”, entre tantos outros jornais e revistas. Transitou “por toda publicação que se possa imaginar”. Seu texto sempre foi apreciado como um dos melhores. Em 2016, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Publicou “Meus Começos e Meu Fim” (Companhia das Letras, 192 páginas) no início de 2019.

Terminei a leitura encantado com o livro. Tenho voltado a ele com frequência, para refletir sobre algumas passagens particularmente eloquentes e processá-las.

Era uma dívida que tinha comigo mesmo, e confesso que me arrependo de somente agora ter agarrado o livro. Fui convidado para o lançamento e não pude comparecer. Comprei o livro em seguida, mas fiquei flertando com ele por um tempo, como se temesse o que iria encontrar. Depois de um tempo, comecei finalmente a lê-lo.

Conheci Nirlando Beirão no começo dos anos 1980. Foi um encontro impessoal, sem nenhum desdobramento em termos de relacionamento ou amizade. Na época, eu integrava a Comissão Paulista pela Legalidade do PCB e organizamos uma espécie de entrevista coletiva para divulgar um manifesto que lançaríamos. Nirlando trabalhava na revista “IstoÉ” e foi o principal entrevistador. O encontro ocorreu numa pizzaria na Rua da Consolação, centro de São Paulo.

Nirlando Beirão: jornalista | Foto: Reprodução

Muitos anos depois, em 2018, reencontrei Nirlando na clínica de fisioterapia FisioOne, de Salete Conde. Eu com meus problemas e ele convivendo com a esclerose lateral amiotrófica (ELA), que já o incomodava muito. Como nossos horários praticamente coincidiam, pudemos conversar algumas vezes, relembrar aquela “épica” entrevista e trocar impressões sobre nossos males. Demos boas risadas.

Pouco tempo depois, Nirlando deixou de ir à clínica, optando pelo Home Care. Perdi o contato com ele e não me senti muito à vontade para procurá-lo.

“Meus Começos e Meu Fim” combina as reflexões de Nirlando sobre a convivência com a enfermidade e as pesquisas que fez sobre um episódio marcante da história da família Beirão. Um avô padre que um belo dia se apaixona, casa e é obrigado a fugir com a noiva é um ótimo assunto literário. Nirlando agarra o fato e o vira de ponta-cabeça, deixando fluir uma versão romanceada de jornalismo investigativo. Dá um show.

A decisão de escrever o livro tem a ver, quero crer, com a vontade de acertar as contas consigo mesmo, com a família e sua história. É uma espécie de autobiografia, que também narra a saga amorosa dos avós. Lê-se o livro com prazer e emoção. Nirlando é um artesão. As frases saltam com naturalidade e envolvem o leitor, impedindo-o de interromper a leitura, seduzido pelo ritmo do texto e pela história que é ali narrada. A trama cativa, é costurada com engenho, muita sensibilidade e boa dose de coragem.

Nascido em 1887 na Beira Alta, em Portugal, António Cabral Beirão formou-se padre no seminário de Viseu, juntamente com António Salazar, o ditador que governou o país por quatro décadas. No início do século passado, o padre Beirão veio para Oliveira, no interior de Minas Gerais. Lá, responsável pela paróquia, encantou-se pela jovem Esméria Miranda e trocou a batina pela vida mundana, o amor divino pela paixão terrena. Escândalo. O casal teve de fugir de Oliveira, estigmatizado pelo provincianismo carola da época. Foi para Alegrete, no Rio Grande do Sul, onde o ex-padre abriu um ginásio. António e Esméria deixaram para trás sua história, legando um “tabu familiar envolto em sussurros e em culpa”. Só mais tarde voltariam para as Gerais.

Nirlando foi atrás dessa história, trafegando “pelos interstícios do silêncio sufocado” e pelo esforço familiar de “calar, pelo pavor da danação eterna, uma bela história de amor”. Carrega-nos por um passeio fascinante pelo passado de Minas e de Portugal. Conta-nos muito sobre as manias da época, sobre o percurso vitorioso do avô, as idiossincrasias familiares, sobre portugueses, mineiros e brasileiros.

Tudo isso é entrecortado e amarrado pelas pungentes reflexões de Nirlando sobre sua condição pessoal. A ELA, como se sabe, é uma enfermidade cruel, progressiva, que degenera o sistema nervoso e acarreta paralisia motora progressiva, irreversível. Ao destruir músculos e células nervosas, maltrata o organismo como um todo, obrigando o paciente a um circuito angustiante e permanente por médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos.

A instalação e o avanço da enfermidade seriam motivo suficiente para a formação de um estado depressivo intenso. É preciso acostumar-se com a ideia de “limite”, com os tombos, o risco da autocomiseração e o fantasma da culpa. Escrutinar o futuro insondável em busca do tempo que resta torna-se tão recorrente quanto se deixar aprisionar pelo passado, “enumerando como numa penitência sem remissão, tudo aquilo que nunca fiz e que talvez devesse ter feito – e que nunca mais farei”.

Nirlando não se deixou consumir. Continuou a escrever, tentando encontrar um sentido para a vida, que foi posta de pernas para o ar mas não o derrotou. Passou a viver no “País da doença”, diferente de tudo, mais complicado, mais aterrorizante, um território onde se dá “a suspensão de tempo e espaço”, uma espécie de “transitoriedade do permanente”, no qual se vive “pela intoxicação do sentimento” e pela recepção das “surpresas trazidas pelo cotidiano, mesmo quando dolorosas”. Um exílio autoimpingido.

Seu “romance autobiográfico”, escrito com leveza, algumas pitadas de ironia, um pouco de amargura e bastante realismo diante dos efeitos práticos e existenciais de sua condição, é uma aula de resiliência. Mostra que a vida é mais forte e vibrante do que quer nos fazer crer o vão derrotismo. Tudo, no fundo, só acaba mesmo quando termina, para todos e cada um de nós.

Atravessar com altivez os mares revoltos e traiçoeiros da vida é uma sabedoria rara, que explode nas páginas de “Meus Começos e Meu Fim”.

Marco Aurélio Nogueira é cientista político, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e professor de teoria política na Universidade Estadual Paulista

Trecho do livro “Meus Começos e Meu Fim”

“A notícia

No início de julho de 2016 — o dia eu tenho com certeza anotado, mas é hoje cruelmente irrelevante — fui diagnosticado com uma doença degenerativa do neurônio motor.

“Degenerativa” é uma palavra que tira você para dançar — uma dança de medo. “Degenerativa”, a palavra me pinçou a alma quando o médico a pronunciou, me tirou o chão.

Foi como se tivesse sido de repente transportado do asséptico cenário do consultório para uma irrealidade leitosa,distante dali, indecifrável no primeiro contato, mas sabidamente sinistra e hostil. A consciência piscou.

As pessoas, ao morrer, vivenciam um estrépito de luzes — é o que dizem os espiritualistas. Eu, ali, frente a uma revelação de trevas, como que ingressava na penumbra fosca de um corredor sem saída.

Tenho dificuldade em acolher más notícias. Costumo desligar o botão do pânico. Mais uma vez, me abstraí num autismo boquiaberto enquanto o neurologista traçava, com punho firme de artista, o esboço didático da minha moléstia. Um círculo perfeito, a que ele chamou de coluna, e dentro uma figura com tentáculos, o assim denominado neurônio central.

Naquele molusco insidioso reside a essência de minha tragédia. Ele decidira falhar, inapelavelmente, numa — aprendi pelo Google — conjuração tóxica de enzimas.

Doença sem cura e sem piedade, mas cujas consequências, as mais paralisantes, podem ser adiadas, me tentam convencer, por um elenco de paliativos, um medicamento aqui, muita fisioterapia acolá, injeções japonesas de vitamina e uma dieta que compense a progressiva perda de massa muscular.

A minha, bem, condenação viera escrita em duas páginas bastante conclusivas, resultado de um exame — eletroneuromiografia — que fiz depois de muito azucrinar mais de um neurologista. Minúcias de números ilustravam a sentença diabólica.

A ignorância me protegeu do perigo que poderia vir do tal exame — e que acabou de fato vindo. Cheguei a brincar, após a longa sequência de choques e de picadelas de agulhas: “Parecia o Doi-Codi”. Comparação idiota, de mau gosto, que agora me irrita.”