Livro de Nirlando Beirão faz celebração à vida
05 janeiro 2020 às 00h00
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Saga amorosa dos avós nos leva a um passeio por Minas e Portugal e serve de base para uma bela demonstração de resiliência
Marco Aurélio Nogueira
O jornalista Nirlando Beirão tem longa e vitoriosa trajetória na imprensa brasileira. Trabalhou na “Última Hora”, “Jornal da Tarde”, “O Estado de S. Paulo”, “Playboy”, “Veja”, “IstoÉ” e “Carta Capital”, entre tantos outros jornais e revistas. Transitou “por toda publicação que se possa imaginar”. Seu texto sempre foi apreciado como um dos melhores. Em 2016, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Publicou “Meus Começos e Meu Fim” (Companhia das Letras, 192 páginas) no início de 2019.
Terminei a leitura encantado com o livro. Tenho voltado a ele com frequência, para refletir sobre algumas passagens particularmente eloquentes e processá-las.
Era uma dívida que tinha comigo mesmo, e confesso que me arrependo de somente agora ter agarrado o livro. Fui convidado para o lançamento e não pude comparecer. Comprei o livro em seguida, mas fiquei flertando com ele por um tempo, como se temesse o que iria encontrar. Depois de um tempo, comecei finalmente a lê-lo.
Conheci Nirlando Beirão no começo dos anos 1980. Foi um encontro impessoal, sem nenhum desdobramento em termos de relacionamento ou amizade. Na época, eu integrava a Comissão Paulista pela Legalidade do PCB e organizamos uma espécie de entrevista coletiva para divulgar um manifesto que lançaríamos. Nirlando trabalhava na revista “IstoÉ” e foi o principal entrevistador. O encontro ocorreu numa pizzaria na Rua da Consolação, centro de São Paulo.
Muitos anos depois, em 2018, reencontrei Nirlando na clínica de fisioterapia FisioOne, de Salete Conde. Eu com meus problemas e ele convivendo com a esclerose lateral amiotrófica (ELA), que já o incomodava muito. Como nossos horários praticamente coincidiam, pudemos conversar algumas vezes, relembrar aquela “épica” entrevista e trocar impressões sobre nossos males. Demos boas risadas.
Pouco tempo depois, Nirlando deixou de ir à clínica, optando pelo Home Care. Perdi o contato com ele e não me senti muito à vontade para procurá-lo.
“Meus Começos e Meu Fim” combina as reflexões de Nirlando sobre a convivência com a enfermidade e as pesquisas que fez sobre um episódio marcante da história da família Beirão. Um avô padre que um belo dia se apaixona, casa e é obrigado a fugir com a noiva é um ótimo assunto literário. Nirlando agarra o fato e o vira de ponta-cabeça, deixando fluir uma versão romanceada de jornalismo investigativo. Dá um show.
A decisão de escrever o livro tem a ver, quero crer, com a vontade de acertar as contas consigo mesmo, com a família e sua história. É uma espécie de autobiografia, que também narra a saga amorosa dos avós. Lê-se o livro com prazer e emoção. Nirlando é um artesão. As frases saltam com naturalidade e envolvem o leitor, impedindo-o de interromper a leitura, seduzido pelo ritmo do texto e pela história que é ali narrada. A trama cativa, é costurada com engenho, muita sensibilidade e boa dose de coragem.
Nascido em 1887 na Beira Alta, em Portugal, António Cabral Beirão formou-se padre no seminário de Viseu, juntamente com António Salazar, o ditador que governou o país por quatro décadas. No início do século passado, o padre Beirão veio para Oliveira, no interior de Minas Gerais. Lá, responsável pela paróquia, encantou-se pela jovem Esméria Miranda e trocou a batina pela vida mundana, o amor divino pela paixão terrena. Escândalo. O casal teve de fugir de Oliveira, estigmatizado pelo provincianismo carola da época. Foi para Alegrete, no Rio Grande do Sul, onde o ex-padre abriu um ginásio. António e Esméria deixaram para trás sua história, legando um “tabu familiar envolto em sussurros e em culpa”. Só mais tarde voltariam para as Gerais.
Nirlando foi atrás dessa história, trafegando “pelos interstícios do silêncio sufocado” e pelo esforço familiar de “calar, pelo pavor da danação eterna, uma bela história de amor”. Carrega-nos por um passeio fascinante pelo passado de Minas e de Portugal. Conta-nos muito sobre as manias da época, sobre o percurso vitorioso do avô, as idiossincrasias familiares, sobre portugueses, mineiros e brasileiros.
Tudo isso é entrecortado e amarrado pelas pungentes reflexões de Nirlando sobre sua condição pessoal. A ELA, como se sabe, é uma enfermidade cruel, progressiva, que degenera o sistema nervoso e acarreta paralisia motora progressiva, irreversível. Ao destruir músculos e células nervosas, maltrata o organismo como um todo, obrigando o paciente a um circuito angustiante e permanente por médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos.
A instalação e o avanço da enfermidade seriam motivo suficiente para a formação de um estado depressivo intenso. É preciso acostumar-se com a ideia de “limite”, com os tombos, o risco da autocomiseração e o fantasma da culpa. Escrutinar o futuro insondável em busca do tempo que resta torna-se tão recorrente quanto se deixar aprisionar pelo passado, “enumerando como numa penitência sem remissão, tudo aquilo que nunca fiz e que talvez devesse ter feito – e que nunca mais farei”.
Nirlando não se deixou consumir. Continuou a escrever, tentando encontrar um sentido para a vida, que foi posta de pernas para o ar mas não o derrotou. Passou a viver no “País da doença”, diferente de tudo, mais complicado, mais aterrorizante, um território onde se dá “a suspensão de tempo e espaço”, uma espécie de “transitoriedade do permanente”, no qual se vive “pela intoxicação do sentimento” e pela recepção das “surpresas trazidas pelo cotidiano, mesmo quando dolorosas”. Um exílio autoimpingido.
Seu “romance autobiográfico”, escrito com leveza, algumas pitadas de ironia, um pouco de amargura e bastante realismo diante dos efeitos práticos e existenciais de sua condição, é uma aula de resiliência. Mostra que a vida é mais forte e vibrante do que quer nos fazer crer o vão derrotismo. Tudo, no fundo, só acaba mesmo quando termina, para todos e cada um de nós.
Atravessar com altivez os mares revoltos e traiçoeiros da vida é uma sabedoria rara, que explode nas páginas de “Meus Começos e Meu Fim”.
Marco Aurélio Nogueira é cientista político, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e professor de teoria política na Universidade Estadual Paulista
Trecho do livro “Meus Começos e Meu Fim”
“A notícia
No início de julho de 2016 — o dia eu tenho com certeza anotado, mas é hoje cruelmente irrelevante — fui diagnosticado com uma doença degenerativa do neurônio motor.
“Degenerativa” é uma palavra que tira você para dançar — uma dança de medo. “Degenerativa”, a palavra me pinçou a alma quando o médico a pronunciou, me tirou o chão.
Foi como se tivesse sido de repente transportado do asséptico cenário do consultório para uma irrealidade leitosa,distante dali, indecifrável no primeiro contato, mas sabidamente sinistra e hostil. A consciência piscou.
As pessoas, ao morrer, vivenciam um estrépito de luzes — é o que dizem os espiritualistas. Eu, ali, frente a uma revelação de trevas, como que ingressava na penumbra fosca de um corredor sem saída.
Tenho dificuldade em acolher más notícias. Costumo desligar o botão do pânico. Mais uma vez, me abstraí num autismo boquiaberto enquanto o neurologista traçava, com punho firme de artista, o esboço didático da minha moléstia. Um círculo perfeito, a que ele chamou de coluna, e dentro uma figura com tentáculos, o assim denominado neurônio central.
Naquele molusco insidioso reside a essência de minha tragédia. Ele decidira falhar, inapelavelmente, numa — aprendi pelo Google — conjuração tóxica de enzimas.
Doença sem cura e sem piedade, mas cujas consequências, as mais paralisantes, podem ser adiadas, me tentam convencer, por um elenco de paliativos, um medicamento aqui, muita fisioterapia acolá, injeções japonesas de vitamina e uma dieta que compense a progressiva perda de massa muscular.
A minha, bem, condenação viera escrita em duas páginas bastante conclusivas, resultado de um exame — eletroneuromiografia — que fiz depois de muito azucrinar mais de um neurologista. Minúcias de números ilustravam a sentença diabólica.
A ignorância me protegeu do perigo que poderia vir do tal exame — e que acabou de fato vindo. Cheguei a brincar, após a longa sequência de choques e de picadelas de agulhas: “Parecia o Doi-Codi”. Comparação idiota, de mau gosto, que agora me irrita.”