Livro de Iram Saraiva sobre a mulher é tão doloroso quanto belo

31 março 2019 às 00h00

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Nem abra o livro se não tiver motivo de pranto. Para ler Iram é preciso sentir. Entender a simplicidade de um coração confessional: que sangra, se expõe, se desloca ao subsolo interior

Ana Luíza Andrade
Para ler Iram Saraiva é preciso levar a sério o poema “Desencanto”, de Manuel Bandeira. Em 1917, o poeta pernambucano aconselhava sabiamente os leitores: “Fecha meu livro se por agora não tens motivo nenhum de pranto!”. O ex-senador tem muito pelo que chorar. Como o grego Ulisses, seu lamento é também um ato de coragem. Aprendeu que a confissão literária é o espaço no qual o ser humano pode ser perdoado, redimido, curado.
Iram Saraiva ainda tenta se “curar”. Diariamente, de sua cadeira de rodas, observa a vida pela janela de sua casa. Lá fora, longe da confusão pública de Goiânia, vê do quintal uma árvore frondosa, “digna de uma assinatura de Van Gogh”, onde tucanos e araras sobrevoam o céu limpo do cerrado. Onde há paz e o silêncio natural para viver um casamento dentro de si, mergulhado em recordações póstumas e saudades.
Saudade de sua mulher, Maria Aparecida Silveira Saraiva, que se foi há quatro anos. Saudades do cotidiano compartilhado. De coisas simples e insubstituíveis como dizer “Eu te amo” e escutar visualmente um “Eu te amo” de volta. Saudades da presença de um outro corpo. Aquela matéria feminina e graciosa com quem compartilhou a vida por quase 43 anos.
Cedo demais, Cida-Cidade. Era assim que a filha Glauce, com apenas 4 anos, chamava a mãe. Glauce, ainda pequena, não podia compreender profundamente a grandiosidade poética desse apelido. Cida era mesma uma cidade, povoada de amor, repleta de vida e movimento, capaz de abrigar todos os filhos, incluindo o filho-marido, embaixo dos braços fortes de concreto. O que aconteceu com Cida? Porque sabemos da morte e ela ainda é um espanto? O que a vida faz da gente? É preciso coragem para escrever. O antes, o durante e o depois de Cida, na vida de Iram — o homem que foi deputado estadual, deputado federal, senador, presidente do Tribuna de Contas da União (TCU) e vereador. E, antes, disso professor de História e de Direito.

Primeiro, o olho direito. Em seguida, o derrame. E, então, a hemiplegia, que paralisou completamente um dos lados do corpo daquela mulher tão forte, aparentemente indestrutível. Como, meu Deus? Por que ela e não eu?, questiona o marido cego de dor, “que enxerga, mas não vê”. Como se não bastasse a fatalidade cruel dos episódios subsequentes, o diagnóstico cínico do derrame ainda mais perverso: sua origem, um tumor maligno em local inoperável da cabeça. Em seu leito, Cida-Cidade “era preparada por um câncer para a sua travessia”.
Natural é pensar que com sua partida, Cida se transformou em uma cidade invisível de Calvino, o Italo. Talvez seu espírito esteja caminhando, neste exato instante, por Zora, a cidade que quem viu uma vez nunca mais esquecerá. Pois você não sabe que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor e salteado? Seus traços, o sorriso fácil, a textura de sua pele arquitetônica, a doçura de seu colo, seu talento de mãe: é Cida. O princípio e o fim de Iram. O seu primeiro e último pensamento. Não a morte, mas o reencontro como princípio da nova vida.
“Para todo o sempre”, Iram diz. “Para todo o sempre” cravado como título do livro. “Para todo o sempre”, gravado na aliança que Iram guarda no matrimônio espiritual de seu corpo. “Para todo o sempre”, reverbera o compromisso firmado entre testemunhas e a valsa nupcial. “A encarnação da alegria e da tristeza.” Ai de Iram se não fosse Cida, teria sido apenas tristeza, não saberia o significado da palavra comunhão.
O livro de Iram é a expiação ou catarse desse luto. O regurgitar da dor que não pode ser exprimida em uma ou duas frases pelos lábios limitados de um homem. Essas palavras duras e honestas precisam de espaço, tempo, lágrimas, capazes de alcançar a grandiosidade de um sentimento inexprimível como a solidão de quem ama e fica para trás. De quem espera. De quem amou e foi amado. De quem seguirá amando.
Leitor às vezes imprudente: nem abra este livro se não tiver motivo nenhum de pranto. Para ler Iram é preciso sentir. Entender a simplicidade despretensiosa de um coração confessional: que sangra, se expõe, se desloca ao subsolo interior, traz luz para as memórias de um exílio. Dentro de si, é onde Iram encontra a paz. Dentro de si, Cida-Cidade segue firme. Plena e repleta de amor. Não será esquecida. Nesse meio tempo, Iram segue com essa “vida de iô-iô”. Sem pressa. Tudo ao seu tempo. Pois que “há tempo para o todo propósito debaixo do céu”.