Literatura e internet
25 novembro 2017 às 09h34
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A web pode ajudar o leitor a penetrar melhor no bosque da ficção e colher dele boas safras de entendimento, nessa nova era de acesso ao conhecimento, de assombros e espantos
Quando a internet chegou, aos poucos fomos mudando nosso jeito de ler. Até a literatura entrou na dança. E ficou melhor, ficou mais gostoso ler um clássico ou acompanhar as figuras de nomes e coisas transfiguradas no corpo do texto literário. Por exemplo, quando o narrador cita um lugar, o leitor vai ao Google e verifica se esse lugar existe. Raramente não dá para saber. A não ser que seja uma invenção cem por cento imaginativa, como a ilha suspensa de Swift, a cartografia de Verne.
Quase sempre, o lugar está lá de tudo quanto é jeito, inclusive escancaradamente aberto e real, dialogando com a ficção, apontando para o leitor onde o autor criou, onde ele foi fiel à topografia. Se for uma cidade, um bairro, uma rua, uma casa, o lugar está lá atualizado, no Google Street. Ou já virou lembrança.
Quando o narrador cita uma música, um filme, corre-se ao Youtube. Um quadro, o nome de um pintor, uma premissa filosófica, uma referência histórica, tudo pode ser vasculhado no momento exato em que se lê. O diálogo com o autor do livro fica mais interessante.
A internet é tão poderosa nesse sentido que, a despeito do sentimento de quem gosta de ler textos em livros físicos, para sentir o cheirinho, a espessura, sugar ácaros eruditos, a plataforma do futuro são os e-books, talvez não do modo como aparecem ainda, mas muito mais conectados. E-books capazes de demonstrar qualquer descrição ou sensação expressas no texto escrito, de sons a cheiros.
A sensação do cheiro ainda é conversa de louco, mas, do mesmo modo que há paleta de cores, os geniozinhos da cibernética podem encontrar uma maneira de se construir uma paleta de odores. E aí será o fim do sossego. Será a passagem para uma nova era de acesso ao conhecimento, de assombros e espantos com a manifestação de um novo sentido. O mundo ficará mais rico e mais medonho.
Ritmos
Mas, voltando à questão da literatura, é instigador ler um livro como “A Invenção de Morel”, de Adolfo Bioy Casares, e ver que no oceano de invenções e intertextualidades, o narrador cita músicas que existem, sobre as quais, às vezes o leitor jamais ouvira falar, como “Tea For two” e “Valencia”, duas belíssimas canções da década de 1920, que ilustram a alternância de ritmos da narrativa de Casares.
Ao ler “1Q84”, de Haruki Murakami, trilogia distópica que dialoga com todas as distopias anteriores, inclusive com “A Invenção de Morel”, o leitor se depara, na primeira página, com uma canção erudita intitulada “Sinfonietta”, de um tal de Janáček. Vai à internet e vê que se trata de uma sinfonia marcial curta, uma resistência contra a opressão, “contra a sedução do fascismo”, segundo Corinna da Fonseca-Wollheim, em texto publicado em The Wall Street Journal, em 2011.
“Sinfonietta” vai marcando a dramaticidade do romance de Murakami, o ritmo belicoso da protagonista Aomame. Fica tudo mais sonoro, mais belo. O leitor então descobre que Leoš Janáček é um compositor tcheco cuja obra está disponível online para quem quiser usufruir, e aprende coisas novas, além de sentir com mais vigor a verve pop e maravilhosa de Murakami.
Realidade
Quem se atreve a ler “Em Busca do Tempo Perdido”, usando a internet como ferramenta de apoio, tem muito a ganhar, porque, à medida que vai penetrando o espesso bosque da ficção de Marcel Proust, vai também adquirindo uma cultura adjacente de todo o século 19, e algo atual sobre a alma humana, sobre subjetividade, alteridade.
O romance de Proust é um daqueles dos quais não se sai como entrou. De qualquer modo, com ou sem internet, o leitor será outro, ao finalizar a leitura. Mas com o uso da web, ele pode ir reconhecendo as citações, e quando perceber, terá ganhado de graça um minicurso de história da arte, da literatura e da música.
“A internet é tão poderosa que, a despeito do sentimento de quem gosta de ler textos em livros físicos, para sentir o cheirinho, a espessura, sugar ácaros eruditos, a plataforma do futuro são os e-books”
Com esse artifício, a palheta de cores ficará mais rica na obra de Proust. O colorido do ambiente do romance é perpassado pela colorido da pintura. O real é trespassado pelo matiz do imaginário dos grandes pintores. O real, que Proust conceitua como fruto da memória, que está sempre um passo atrás do momento em que acessamos as coisas de fato, que deve ser recuperado pela memória, este real, fica mais aguçado na leitura quando entendemos que ele é recuperado ao recuperar-se o tempo.
Percebemos que a vida então é uma espécie de ficção coletiva, cujos valores mais caros a nós, da amizade, do amor, da beleza, da confiança, passam pela recuperação do tempo que ficou para trás e que deve ser trazido de volta pela memória. O presente depende do que já foi feito.
Ao transfigurar a arte para sua arte (metalinguagem), Proust sugere que a arte nos ensina a viver porque ela registra os sons e as cores, a base da paleta de sensações que vai nos ajudar a entender os sabores, os tatos, os cheiros de terra, a vida como sinestesia.
Se não temos todos os livros, todos os quadros, todas as músicas citadas por Marcel, o narrador de “Em Busca do Tempo Perdido”, podemos usar a internet e ver a riqueza que é tudo aquilo. Poderemos entender melhor por que texto é tecido, e por que as palavras são os fios que tecem a consciência, dentro da qual tudo se encontra e se revela.
Solidão dos dias
Nessa aventura de buscar conhecer melhor os sons e as cores dentro dos romances que leio, ao ler “A Náusea”, de Jean-Paul Sartre, quando a internet ainda era incipiente, fiquei tentando adivinhar que jazz era aquele citado pelo narrador Antoine Roquentin, “One of these days”. Até que um dia, muito tempo depois, a canção estava lá, na plataforma do Youtube.
Pude ouvir. E entendi melhor que aquele livro, junto com uma tese filosófica do ser no mundo, é uma luta contra solidão, inevitável. “Quando se vive sozinho, já nem mesmo se sabe o que é narrar: a verossimilhança desaparece junto com os amigos”, diz Roquentin. Aí, já é só a literatura, a literatura em palavras, no