A Legenda de Robert Johnson – Partes I a III
21 março 2017 às 13h02
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O Jornal Opção divulga três partes do longo poema “A Legenda de Robert Johnson”, de Emmanuel Santiago, ainda inédito em livro
Teria sido o músico norte-americano Robert Johnson (1911-1938) um pactário? É o blues filho do capiroto? Tais questões fazem parte da lenda que envolve Johnson, morto ainda muito jovem. Lenda esta que tornou-se o mote para o poema de Emmanuel Santiago.
Após a leitura das três partes da “legenda”, o leitor pode ainda ouvir duas das principais músicas de Robert Johnson: “Me and The Devil Blues” e “Crossroad”.
Parte I – A origem
A alma, prenda que foi paga
com o sangue de Jesus,
Robert Johnson a vendeu,
conquistando o dom do blues.
Trabalhava na fazenda,
na colheita do algodão,
mas o branco dessa fibra
encarnava suas mãos.
Mãos de negro, carregavam
a memória dos avós:
dois escravos, entre tantos
cuja dor não tinha voz.
E por isso quis cantar:
sua dor não era muda;
arrancá-la foi preciso,
transformá-la toda em música.
Todavia, reza a lenda
que ele não levava jeito;
sua voz soava fraca,
seus acordes, imperfeitos.
Eis que, numa encruzilhada,
Robert Johnson, pertinaz,
envergou-se de joelhos,
invocando Satanás.
O Diabo então surgiu
numa grande labareda
(porém não me comprometam;
como eu disse: reza a lenda).
Parte II – O pacto
E Satã lhe perguntou:
— O que queres, afinal?
— Quero ter o dom da música,
ó Senhor-de-Todo-o-Mal!
— Estás mesmo certo disso?
Por acaso não preferes
ter dinheiro, boa vida,
serviçais, poder, mulheres?
— Não! Aquilo que mais quero,
e meu ser inteiro o clama,
é tocar o violão
como quem empunha lâmina;
é cantar de peito aberto
(coração exposto, nu),
transbordar o sofrimento,
derramá-lo todo em blues.
— Pois que seja! Mas tu sabes
qual o preço deste acerto?
Quero que me dês tu’alma;
menos que isso não aceito.
— Como não se perde mais
o que já está perdido,
eu te dou minha alma, sim,
pois não vejo prejuízo.
O Diabo, satisfeito,
a guitarra pôs ao colo
e, afinando cada nota,
dedilhou um belo solo.
Robert Johnson assistiu
bem atento ao dedilhado
e Satã assim lhe disse:
— Vai e toca, desgraçado!
Parte III – A carreira
A partir daquela noite,
cada vez tocou melhor;
as pessoas o escutavam
e ficavam ao redor.
E trabalho não faltava;
quase não dormia, nunca;
concertou por toda parte
em centenas de espeluncas.
Mas a grana, como sempre,
era curta, muito pouca;
certas noites, só uísque
dava gosto a sua boca.
E algo estranho o perturbava,
pois, tão logo a noite vinha,
escutava um som horrível
de fazer gelar a espinha:
eram uivos e latidos,
animal feroz rosnando;
uma pérfida matilha
a correr-lhe atrás, mas quando
se virava, nada via;
pareciam cães do inferno
pretendendo enlouquecê-lo
ou levar-lhe a vida a término.
No entanto, nesses tempos,
satisfez um velho sonho:
conseguiu gravar um disco
que ninguém ouviu. Tristonho,
afogou-se na bebida,
foi perdendo as esperanças,
pois cantar a dor não cura,
nem conforta, apenas cansa.
Um consolo, ao menos, tinha:
por mais tímido que fosse,
era um grande sedutor,
um galã de lábios doces.
E por causa de mulher
nosso herói seria morto;
morreria envenenado
num funesto mês de agosto.
(…)
Emmanuel Santiago é poeta e tradutor. Autor do livro de poesias “Pavão Bizarro” (São Paulo: Editora Patuá).
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