O Jornal Opção divulga três partes do longo poema “A Legenda de Robert Johnson”, de Emmanuel Santiago, ainda inédito em livro

“Robert Johnson and the Devil”. Pintura de Nicola Verlato

Teria sido o músico norte-americano Robert Johnson (1911-1938) um pactário? É o blues filho do capiroto? Tais questões fazem parte da lenda que envolve Johnson, morto ainda muito jovem. Lenda esta que tornou-se o mote para o poema de Emmanuel Santiago.

Após a leitura das três partes da “legenda”, o leitor pode ainda ouvir duas das principais músicas de Robert Johnson: “Me and The Devil Blues” e “Crossroad”.

Parte I – A origem

A alma, prenda que foi paga
com o sangue de Jesus,
Robert Johnson a vendeu,
conquistando o dom do blues.

Trabalhava na fazenda,
na colheita do algodão,
mas o branco dessa fibra
encarnava suas mãos.

Mãos de negro, carregavam
a memória dos avós:
dois escravos, entre tantos
cuja dor não tinha voz.

E por isso quis cantar:
sua dor não era muda;
arrancá-la foi preciso,
transformá-la toda em música.

Todavia, reza a lenda
que ele não levava jeito;
sua voz soava fraca,
seus acordes, imperfeitos.

Eis que, numa encruzilhada,
Robert Johnson, pertinaz,
envergou-se de joelhos,
invocando Satanás.

O Diabo então surgiu
numa grande labareda
(porém não me comprometam;
como eu disse: reza a lenda).

Parte II – O pacto

E Satã lhe perguntou:
O que queres, afinal?
— Quero ter o dom da música,
ó Senhor-de-Todo-o-Mal!

Estás mesmo certo disso?
Por acaso não preferes
ter dinheiro, boa vida,
serviçais, poder, mulheres?

Robert Johnson (1911-1938), tido como o responsável por consolidar o “Blues” como gênero musical

— Não! Aquilo que mais quero,
e meu ser inteiro o clama,
é tocar o violão
como quem empunha lâmina;

é cantar de peito aberto
(coração exposto, nu),
transbordar o sofrimento,
derramá-lo todo em blues.

Pois que seja! Mas tu sabes
qual o preço deste acerto?
Quero que me dês tu’alma;
menos que isso não aceito.

— Como não se perde mais
o que já está perdido,
eu te dou minha alma, sim,
pois não vejo prejuízo.

O Diabo, satisfeito,
a guitarra pôs ao colo
e, afinando cada nota,
dedilhou um belo solo.

Robert Johnson assistiu
bem atento ao dedilhado
e Satã assim lhe disse:
Vai e toca, desgraçado!

Parte III – A carreira

A partir daquela noite,
cada vez tocou melhor;
as pessoas o escutavam
e ficavam ao redor.

E trabalho não faltava;
quase não dormia, nunca;
concertou por toda parte
em centenas de espeluncas.

Mas a grana, como sempre,
era curta, muito pouca;
certas noites, só uísque
dava gosto a sua boca.

E algo estranho o perturbava,
pois, tão logo a noite vinha,
escutava um som horrível
de fazer gelar a espinha:

eram uivos e latidos,
animal feroz rosnando;
uma pérfida matilha
a correr-lhe atrás, mas quando

se virava, nada via;
pareciam cães do inferno
pretendendo enlouquecê-lo
ou levar-lhe a vida a término.

No entanto, nesses tempos,
satisfez um velho sonho:
conseguiu gravar um disco
que ninguém ouviu. Tristonho,

afogou-se na bebida,
foi perdendo as esperanças,
pois cantar a dor não cura,
nem conforta, apenas cansa.

Um consolo, ao menos, tinha:
por mais tímido que fosse,
era um grande sedutor,
um galã de lábios doces.

E por causa de mulher
nosso herói seria morto;
morreria envenenado
num funesto mês de agosto.

(…)

Emmanuel Santiago é poeta e tradutor. Autor do livro de poesias “Pavão Bizarro” (São Paulo: Editora Patuá).

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