Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

(Segunda parte da análise do livro “Cidadania no Brasil — O Longo Caminho”, do historiador José Murilo de Carvalho, doutor por Stanford e pós-doutor pela Universidade de Londres)

A dinâmica da construção da cidadania no Brasil se elevou consideravelmente a partir da vitória da revolução que insurgiu contra as oligarquias regionais: a Revolução de 1930. A partir de 1930, o voto popular passou a ter um valor que não tinha antes. Desse modo, sob o comando do gaúcho Getúlio Vargas, novo presidente da República, implementou-se uma política de cooptação da classe trabalhadora ávida por emprego e renda. Nascia, assim, o chamado trabalhismo que influenciou diretamente a melhora de um dos três pilares que constroem a cidadania: o dos direitos sociais.

Sob esse aspecto é evidente que o trabalhismo getulista foi decisivo para a elevação da cidadania ante os consideráveis ganhos obtidos pelos trabalhadores sindicalizados. Por sua vez, há de se ressaltar que tantos os ganhos políticos quanto os ganhos civis não apresentaram um crescimento contínuo e crescente.

Livro do historiador e doutor em ciências políticas José Murilo de Carvalho | Foto: Jornal Opção

Uma interessante constatação, nos escritos do historiador José Murilo de Carvalho, doutor por Stanford, pós-doutor pela Universidade de Londres e ex-professor de Oxford, relativa à ênfase dada pelo getulismo nos direitos sociais, evidencia a maneira distorcida como estes eram percebidos pela sociedade. Quanto a isso, relata o autor que “a antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas como um favor em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reivindicadora”. Dito de outro modo, o trabalhador era visto como um ser passivo e domesticado. Certamente, esse trabalhador estava léguas distantes daquele trabalhador ativo em suas reivindicações. Resultado: a mentalidade paternalista do governo com a sociedade resultou numa cidadania passiva e nada parecida com o sujeito proativo de suas próprias ações.

Do ponto de vista ideológico, a chamada “Era Vargas” foi diretamente influenciada pelo positivismo de Auguste Comte. Entende esse autor que o proletariado deva ser incorporado à sociedade por meio de medidas de proteção aos trabalhadores e suas famílias.

A partir dessa crença é possível entender as inúmeras realizações da Era Vargas que tanto beneficiaram determinada classe que se mostrava cada vez mais expressiva num Brasil que se urbanizava: a dos trabalhadores.

Vale ressaltar o relevante papel dos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), fundado um ano após o suicídio de Getúlio Vargas, com propósito de moldar e propagar a ideologia que pautou o legado nacional desenvolvimentista para um dos governos mais dinâmicos de toda a nossa história: o governo de Juscelino Kubitschek.

José Murilo de Carvalho: historiador que brilhou na UFRJ | Foto: Reprodução

Do ponto de vista institucional, o Estado cresceu criando instituições com missões específicas de atuação nas mais diferentes áreas que sustentam o desenvolvimento do país. Uma dessas instituições, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, foi de suma importância para instrumentalizar as políticas públicas que beneficiaram principalmente a massa trabalhista urbana. Por limitação de espaço, transcrevo, dos escritos do autor, um trecho em que este narra a enormidade de instituições criadas na Era Vargas para atender às massas urbanas sindicalizadas.

Com a palavra José Murilo de Carvalho: “Na área trabalhista, foi criado em 1931 o Departamento Nacional do Trabalho. Em 1932, foi decretada a jornada de oito horas no comércio e na indústria. Nesse mesmo ano, foi regulamentado o trabalho feminino, proibindo-se o trabalho noturno para mulheres e estabelecendo-se salário igual para homens e mulheres [….]”.

Não poderia deixar de citar a criação, em 1943, da vasta legislação que rege até hoje o trabalho no Brasil: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para os menos informados, creio ser oportuno lembrar que essa legislação foi concebida num ambiente cujo contexto imperava a fragilidade dos direitos políticos e civis. Prevaleceu, sob os demais, os direitos sociais.

Desse modo, a construção de nossa cidadania voltava a apresentar um movimento de recuo. A partir de 1945, ela voltou ao seu caminho de construção influenciada pelo considerável crescimento dos indicadores políticos. Falaremos desse assunto no item que segue.

O marechal Eurico Gaspar Dutra sucedeu, pelo pleito direto, a Getúlio Vargas (que se elegeu senador). A partir daí, uma nova Constituição foi promulgada em 1946. Nesse contexto, o processo de recua-avança voltou a caminhar no sentido de fortalecer a construção da cidadania brasileira.

Para isso, a Constituição, além de manter conquistas sociais, garantiu os direitos civis e políticos. Entretanto vale ressaltar o pouco avanço dos direitos sociais nos tempos em que o país vivia sob a égide de governos democráticos. Resultado: a tríade que integra a construção da cidadania não se manteve completa, ante o avançar dos direitos políticos e civis, mas não dos sociais. Em 1950, Getúlio Vargas volta ao poder pelos braços do povo, numa onda de intenso nacionalismo que culminou com a criação da Petrobrás.

A agitação política alimentada por seus incontáveis adversários ou inimigos levou o velho e doente Vargas a implementar aquela trágica estratégia que tanto abalou a história política do Brasil: o suicídio. Assim, a velha raposa calou seus inimigos por dez anos. O cadáver de Vargas, assim como o fantasma de Hamlet, do genial William Shakespeare, foi fundamental para que Juscelino Kubitschek assumisse a Presidência num contexto absolutamente democrático.

De início, já no exercício da Presidência, o ex-governador de Minas Gerais recebeu uma forte oposição a seu governo pelo fato de este ser visto como uma continuação do governo de Getúlio Vargas. E isso é uma verdade, pois a ideologia do nacional desenvolvimentismo, de certo modo, caracterizou-se como uma continuação da Era Vargas. Essa concepção de desenvolvimento foi fundamental para a industrialização de São Paulo. O grande símbolo dessa industrialização foi, sem dúvida, a indústria automobilística. A mudança da capital para Brasília foi fundamental para levar o desenvolvimento ao interior do país. Inúmeras usinas e estradas se tornaram a face mais visível de um desenvolvimento voltado para atender às enormes demandas do país por energia e transportes. Nessa euforia desenvolvimentista é oportuna a seguinte indagação: que dinâmica seguiu a construção da cidadania brasileira nesse ambiente democrático de euforia desenvolvimentista?

Eis a resposta: há de se ressaltar que, apesar da euforia produzida pela Era JK, o governo dele não mexeu num vespeiro chamado reforma agrária. A educação, de igual forma, não teve os mesmos avanços da infraestrutura. Por essa razão, a construção da cidadania, sem ser foco do governo JK, continuou seu rumo, lento, sim, mas sem retrocessos. A lentidão da construção de nossa cidadania tem suas explicações no pouco avanço de um dos três pilares que integram o ser cidadão: os direitos sociais.

Entende o autor que, “sintomaticamente, os direitos sociais quase não evoluíram durante o período democrático. Desde o final do Estado Novo, os técnicos da previdência buscavam, com o apoio de Vargas, unificar o sistema e expandi-lo para abranger toda a população trabalhadora. Mas eram grandes as resistências”. Isso sim, principalmente a integração de um tipo de trabalhador pouco considerado mesmo em governos dinâmicos como foi o de JK: o do meio rural. Num ambiente de tranquilidade, Juscelino passou o governo para um presidente de temperamento instável que, sete meses após a posse, renunciou. Falo de Jânio Quadros. Pela brevidade do seu mandato, a cidadania brasileira não sofreu as modificações, as quais vieram a ocorrer no breve e intenso governo de João Goulart. A esse respeito, o autor relata, em seus escritos, a aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social, que possibilitou a ampliação da cobertura previdenciária, dessa forma, passando a incluir os profissionais liberais. Entretanto continuavam excluídos dos benefícios previdenciários os trabalhadores rurais, os trabalhadores autônomos e as empregadas domésticas. Com a deposição de João Goulart, os militares se tornam os novos donos do poder. A partir daí, o longo caminho da construção da cidadania, no Brasil, passou por um novo olhar, num novo ambiente léguas distantes do ideário democrático. Esse é o assunto do item a seguir.

Salatiel Soares Correia é mestre pela Unicamp. É colaborador do Jornal Opção.