José Murilo de Carvalho: a cidadania amordaçada (3ª parte)

29 novembro 2022 às 11h35

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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
“Cidadania no Brasil — o Longo Caminho”, do historiador José Murilo de Carvalho, é um livro que analisa a construção da cidadania ao longo do tempo. Nessa trajetória, inúmeras informações correlatas, se não bem-trabalhadas, podem induzir dispersões por parte de quem escreve; e perplexidade para quem lê.
Ciente disso, optei por me ater aos acontecimentos e aos fatos diretamente ligados à construção do indivíduo enquanto cidadão. Por essa razão, focalizado nesse objetivo, foram considerados apenas fatos relacionados à construção da cidadania. Portanto, caro leitor, se o assunto lhe interessar detalhadamente, não pense duas vezes: compre o livro e deleite-se com a leitura desse clássico da ciência política. Posto isso, vamos em frente.
Com a queda do governo João Goulart, em abril de 1964, assumiram o poder os representantes de uma classe que esteve presente nos acontecimentos políticos desde que o Brasil se tornou uma República. No poder, esses personagens tomaram medidas que foram, de imediato, calando as vozes da sociedade organizada.
Nesse contexto, inúmeros políticos foram cassados, um contingente considerável de professores foram “convidados” a aposentarem-se, a classe artística sentia o peso da censura, assim como os inúmeros sindicatos sofreram intervenção, a voz de protesto da União Nacional dos Estudantes calou-se ante a invasão de sua sede.

A absoluta falta da arte da política na sociedade brasileira influenciou na maneira como o regime se comunicava fora da caserna, onde se encontravam o povo e as instituições a ele correlatas.
Desse modo, perante a ausência do processo político, o governo impunha sua soberana vontade através dos atos institucionais. No entender do professor-doutor José Murilo de Carvalho, esses atos institucionais consistiam em “instrumentos legais de repressão”.
Para apurar supostos crimes de corrupção e subversão, o governo dispunha dos famosos Inquéritos Policiais Militares (IPMs), estes geralmente conduzidos por coronéis do Exército. De acordo com o autor, os IPMs nada mais eram que instrumentos “que perseguiram, prenderam e condenaram bom número de opositores. O perigo comunista era a desculpa mais usada para justificar a repressão”.
Na verdade, os atos institucionais e os Inquéritos Policiais Militares foram instrumentos que colocaram uma espécie de freio na construção da cidadania brasileira. O imobilismo da cidadania se fez notar no completo retrocesso de dois dos três direitos que integram a tríade (já comentado neste espaço) que alicerça o ser cidadão, quais sejam: os direitos políticos e direitos civis. Enfim: os dez primeiros anos do regime ditatorial liderado pelos militares foram decisivos para que a construção da cidadania brasileira retrocedesse. Nesse sentido, a velha fórmula que privilegiava os direitos sociais em detrimento dos direitos civis e políticos desequilibrou a equação que mensura a tríade da construção da cidadania, qual seja: cidadania = direitos políticos + direitos civis+ direitos sociais.
Resta-nos saber se, na outra metade do regime militar, de descompressão do sistema político, o país construirá a sua verdadeira cidadania alicerçada na tríade direitos políticos, direitos civis e sociais. Naquela época, o país passava por um contínuo processo de abertura política. Esse período de construção da cidadania brasileira chamei de cidadania libertada.

A cidadania libertada
A última fase do regime militar corresponde àquele período em que o cientista político Samuel Huntington chamou, no diagnóstico que fez para o governo dos militares, de “descompressão do sistema político”. Foi a partir daí que o novo presidente da República, o general Ernesto Geisel, liderou o início (a distensão) do processo de abertura política que culminou com a volta à normalidade democrática. Não é objetivo deste ensaio-resenha discutir eventuais casuísmos como, a exemplo, a criação dos senadores biônicos para que o Executivo não perdesse o controle do Senado, tampouco cabe a estes escritos analisar episódios de insubordinação de certas alas dos militares contrárias à abertura política (nesse episódio, Geisel demitiu o general Silvio Frota, que liderava os rebeldes). Portanto, o que de fato interessa aqui é avaliar as consequências da abertura política na dinâmica do processo de construção da cidadania no Brasil.
Para que se possa entender o compromisso do governo Geisel com a abertura política, faz-se necessário relacionar esse general ao grupo com o qual ele tinha estreitas relações: a do general Castelo Branco. Os assim chamados “castelistas” defendiam que o poder devia, depois de certo tempo, voltar para as mãos da sociedade civil. Esse pensamento divergia da chamada “linha dura”.
Quanto a isso, a equação em função dos direitos políticos, civis e sociais manteve-se desequilibrada. Ou seja, a tríade era em pleno desequilíbrio, este causado pela ênfase nos direitos sociais em detrimento dos direitos políticos e civis. Chamei essa cidadania de amordaçada. E assim a estratégia dos tempos de Getúlio Vargas se repetiu: compensar a pouca ênfase nos direitos políticos e nos direitos civis valorizando os direitos sociais.

Os compromissos rumo à descompressão do sistema político englobam os mandatos dos governos de Ernesto Geisel e João Batista de Oliveira Figueiredo. Nessa fase, o país vivenciava, paulatinamente, a volta da normalidade democrática. À guisa de maior esclarecimento, apresenta-se a seguir algumas das medidas que possibilitaram surgir um movimento que certamente iria fortalecer a volta, em sua plenitude, de um dos vértices que integram a tríade da cidadania: os direitos políticos.
1978
O congresso votou o fim do AI-5.
Fim da censura prévia no rádio e na televisão.
Restabelecimento do habeas corpus para crimes políticos.
Atenuação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Permissão para o regresso de 120 exilados.
Nos tempos do governo do general João Batista de Oliveira Figueiredo, continuou o rumo da descompressão do sistema político. Vejamos algumas medidas que possibilitaram o país caminhar rumo à abertura do sistema político.
1979
Extinção do bipartidarismo (extinção da Arena e MDB).
1980
Criação do Partido dos Trabalhadores.
Eleições diretas para governador.
O fim dos governos autoritários.
O ciclo de descompressão do sistema político se encerrou com o surgimento de um novo ciclo de abertura política, em cujo contexto imperou a soberana vontade da sociedade brasileira. Nesse sentido, o movimento das Diretas Já em prol das eleições diretas para presidência da República e o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello evidenciam a restauração de um importante pilar que integra a tríade construtora de nossa cidadania: a dos direitos políticos.
Terra em transe para os direitos sociais
A Constituição de 1988 foi decisiva para a melhora e a piora de alguns dos indicadores que integram uma das tríades da construção da alma cidadã: os direitos sociais. Sendo assim, são evidentes as melhoras da seguinte ordem: fixação do salário-mínimo como limite inferior das aposentadorias extensivo aos deficientes físicos e aos maiores de 65 anos, tenham eles contribuído ou não para a Previdência, introdução da licença-paternidade etc.
Do ponto de vista da qualidade de vida, os indicadores apresentaram, ainda que timidamente, certa melhora. Vejamos o caso da queda da mortalidade infantil. Essa caiu de 73 por mil crianças nascidas vivas, em 1980, para 39,4 em 1999. Esperança de vida ao nascer passou de 60 anos para 67 em 1999. Destaca-se que um dos indicadores que mais influenciam na construção da alma cidadã são os que mensuram a redução do analfabetismo, e estes apresentaram uma considerável redução de 15 anos ou mais (caiu de 25,4%, em 1980, para 14,7% em 1996).
Vale ressaltar que essa melhora não representa uma significativa mudança de realidade. Quanto a isso, ninguém duvide que, para se alcançar a alma cidadã, o país necessita obter consideráveis avanços.
Desafios ainda maiores necessitam ser vencidos numa área que privilegia uma parcela da sociedade em detrimento de toda a sociedade. Essa área é a Previdência Social. Nesse sentido, é necessário que o governo envide esforços no intuito de paralisar a sangria dos cofres públicos voltados principalmente para irrigar os altos salários de uma pequena casta de bem-aposentados. De modo mais amplo, o país tem um grande desafio pela frente, que é o de reduzir algo quanto ao qual recebeu o título nada honroso de país mais desigual do mundo. A terra em transe dos direitos sociais evidencia o quão longo é o caminho a percorrer no sentido de construir a alma cidadã no modo de agir do povo brasileiro.
Salatiel Soares Correia é mestre pela Unicamp. É colaborador do Jornal Opção.