Em “Valsa Azul”, uma das canções que compõem o CD “Pérolas aos Poucos”, de José Miguel Wisnik, a harmonização dos contrários se dá por meio de um procedimento de inversão. Subitamente, o eu-lírico testifica o enlace entre o alto e o baixo, entre o físico e o metafísico, e o divino faz-se telúrico

Músico, compositor e ensaísta José Miguel Wisnik | Foto: Festcine Amazonia
Músico, compositor e ensaísta José Miguel Wisnik | Foto: Festcine Amazonia

Roberto Amaral
Especial para o Jornal Opção

Sempre a passagem do tempo e o fantasma da morte a assustar, a impelir o espavorido ser humano a rotas de fuga para bem distante de sua dissolução. Ele sofre, ele desanima, ele se desilude, mas não quer morrer, não quer deixar de existir, uma vez tendo vindo ao mundo, agarra-se às promessas irrealizáveis de uma vida edulcorada, o paraíso na terra.

Contra a ruína, a imaginação — a louca da casa — trabalha incessantemente em favor de tornar o corpo e o mundo habitáveis para o caniço pensante.

Uns buscarão, por meio de gestos metafísicos e heroicos, enfrentar Cronos e a Enjeitada das gentes com armas que os espantem para bem longe de sua falência existencial: negação, evasão e artifícios que assegurem o saldo de uma sobrevida, quiçá a eternidade.

Outros, porém, ponderando a inutilidade em se resistir à inexorabilidade do envelhecimento e do fim final, optam, não pelo enfrentamento, mas pela eufemização, pela capitulação à transitoriedade do tempo e embarcam destemidos na canoa de Caronte, pois a morte não é aniquilamento, é prelúdio de renascimento, necessária e aconchegante crisálida.

Uma das formas de eufemizar o terror provocado pelas imagens de Saturno devorando os próprios filhos, dos relógios de Dalí derretendo ao sol e do trotar terricante do cavaleiro de Dürer, se dá pela exploração do imaginário de uma complexa dialética entre o tempo e a eternidade, entre a vida e a morte.

É esta harmonização dos contrários que se epifaniza em “Valsa Azul”, de Zé Miguel Wisnik e Nelson Ferreira, uma das canções que compõem o CD “Pérolas aos Poucos”.

Nas duas primeiras estrofes:

“Não sei se sonhei
Ou se embarquei
Pela loucura além

Não sei se voei
E me perdi
Se só viajei
Ou se bebi.”

O eu-lírico tenta encontrar sentido para a ra­ra visão que o arrebatou, que o fez confundir-se entre a imprecisão onírica, o labirinto da in­sa­nidade, o devaneio poético e a embriaguez alcóolica.

O que importa é que os arcanos da imaginação lançaram-no a um desvelamento para além ou aquém da ficção, pois o que ele viu foi apenas o que se lhe afigurou absolutamente verdadeiro:

“Eu só sei que vi”
E o que ele, perplexo, testemunhou?
Eu só sei que vi
No chão se abrir
Para flor do espanto meu
Um poço sem fundo
Lá no fundo do céu.”

Aqui vê-se operar a harmonização dos contrários por meio de um procedimento de inversão especular, o céu surge na terra desde um poço sem fundo.

Um prodígio se realiza e, subitamente, o eu-lírico testifica o enlace entre o alto e o baixo, entre o físico e o metafísico, e o divino faz-se telúrico.

Ora, o chão, a carnadura da terra, é o elemento da transitoriedade, do movimento, da mudança, a glória de Heráclito. O poço sem fundo implica na vertigem da queda que, isomórfica da expulsão do Éden, fez de cada ser humano um irmão bastardo da Adão.

Como, então, pensar no surgimento do céu, manifestação do eterno no temporal, desde tal poço sem fundo, cuja infinitude já não é mais treva ignominiosa, mas anil redenção?

Eis, portanto, a harmonia dos contrários entrelaçando-se com seus fios de desencontradas pontas.

“Todo trabalhado em espirais
De argila escura e luz
O poço descia sob os meus pés
Mas também subia qual chaminés.”

Sabe-se agora que os fios desencontrados que tecem a harmonia dos contrários não necessariamente se juntam embaraçados, apenas se tocam sutilmente a cada vez que o ciclo de suas espirais quase se completam, daí a possibilidade de a luz do céu mirar-se no espelho d’água da poça de lama, o tampo opaco do poço sem fundo.

Nada desprezível é a rítmica erótica que a visão impõe ao eu-lírico, ora sendo engolido desde os pés pelo poço sem fundo: homem-falo; ora, sendo soerguido desde o sem-fundo do poço tornado chaminé: falo-sobre-humano. Prazer e gozo cor de argila e anil.

“Pois mirava sempre pro círculo azul
E o céu não sabia onde era o norte e o sul.”

O céu, que se manifestou ao eu-lírico desde o po­ço sem fundo, cujo tampo era o espelho d’água cor de argila, embora refletisse a luz anil, permanecia diverso do céu dos navegantes, cujos astros os livram do desnorteio e do extravio.

Tal céu permanece redondo, margeado pela fronteira esférica do poço sem fundo, receptáculo feminóide do acolhimento, roda da fortuna, relógio d’água que atrasa as horas da dissolução.

“Dentro dali flutuava um sonho
Valsa invisível da minha ilusão
Fora a cidade tremia e estremecia
De sensações em multidões
Produzindo usinas, buzinas
Mas eu só queria vertigem e o vão
Dentro do espelho daquela visão
E desejava que a lua, a própria lua
Fizesse a sua aparição.”

Perto de alcançar o profundo da manifestação feérica que lhe abria o olho do espírito, eis que o eu-lírico, por medo, por susto, permite que a megera cartesiana se intrometa, induzindo-o a perguntar pelo sentido da coisa que o acomete: É sonho? É ilusão?

Já percorrendo o espaço evasivo que se justapõe entre o sono profundo e a vigília, o eu-lírico vê-se reavivado, aos poucos, por suas sensações, carentes de dar sentido àquilo que era pura ausência de forma, mas que, disforme, se consubstanciava na mais pura e bela verdade.

Era a valsa azul que, paradoxalmente, em seu ritmo ternário, fazia do eu-lírico não mais par de si mesmo no espelho d’água que juntava céu e o poço sem fundo. O eu-lírico e o seu outro-eu de mãos dadas com um tempo-menino, giravam, giravam, num ciclo que, ao agarrar a própria cauda, voltava a voltear numa valsa sem fim, tal como as fases da redonda lua em seu constante fazer-se e desfazer-se.

“Eu fiquei assim, tempo sem fim
Tonto do encanto, além
Do que vislumbrei, e nunca vi
Do que nunca achei, e estava ali
Uma luz azul que afinal entendi
E subitamente eu me lembrei de ti.”

Tendo alcançado o tempo sem tempo, experienciado uma fagulha de eternidade, o eu-lírico sucumbe, outra vez, ao grão-em-grão que escorre da ampulheta que agenda a sua finitude.
Vê-se, de súbito, destituído do encanto, do vislumbre da visão do tempo dominado que o arrebatou.

Volta-lhe, imperioso, o lume do entendimento, o farol negativo da razão.

Resta-lhe, agora, em favor da imorredoura ideia de si mesmo, o narrar-se, o fiar-se no fio da matéria da memória, tanto precário quanto efêmero.

Olhando nos olhos da morte, humilde, suplicante, admite que dela nunca se esqueceu.

Roberto Amaral é escritor e doutor em Educação.