Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Verhuny é uma pequena cidade provinciana localizada no interior da Ucrânia. Gerações e gerações dos seus habitantes sempre conviveram em harmonia. “Os velhos e os jovens podiam entrar e sair livremente sem serem molestados”, relembra um filho ilustre da terra, o escritor Simon Starow, autor dos escritos que passo a comentar.

A vida em comunidade nessa pequena cidade da Ucrânia costumava ser repleta de sabedoria e calor humano. Ativando o jogo da memória, o autor relembra os bons tempos em que, na pacífica Verhuny, vivia um povo feliz e altamente solidário. “Era costumeiro os vizinhos ajudarem uns aos outros em seus labores emergenciais”, relata ele.

A partir de 1929, a população da pequena cidade começou a ficar apreensiva ante um boato que se mostrou, com o passar do tempo, realidade: o Partido Comunista e o governo soviético endureceriam o tratamento àqueles que os donos do poder em Moscou consideravam seus verdadeiros inimigos, da nova política de coletivização imposta pela ditadura de Ióssif Stálin, os grandes fazendeiros. Ciente disso, o governo tratou de coletivizar os bens deles.

Antes de seguirmos em frente, creio ser oportuno o seguinte esclarecimento: embora, na agricultura dessa cidade ucraniana, predominasse o pequeno agricultor, o país de Simon Starow teve a melhor agricultura, altamente produtiva, como os reais opositores do regime liderado por Stálin. O leitor encontrará, no texto, a palavra kurkul, em ucraniano, ou kulak, em russo. Ela foi amplamente usada durante o processo de coletivização da agricultura para caracterizar os ricos fazendeiros da Ucrânia, que se enriqueceram às custas da exploração das classes de menor poder aquisitivo. A intenção era ofender todos os fazendeiros que o Estado soviético intencionava destruir. Contra eles, insurgiu-se a fúria da ditadura de Stálin, que levou a um dos maiores derramamentos de sangue da história: estima-se que cerca de 4 milhões de vidas foram ceifadas nesse triste período da humanidade.

Miron Dolot: o narrador do Holodomor | Foto: Reprodução

Pai de escritor foi morto por bolcheviques

Simon Starow nasceu na pequena cidade ucraniana de Verhuny. De origem humilde, ele viveu, logo aos 3 anos, uma tragédia pessoal: perdeu o pai, que foi assassinado pelos bolcheviques por ser considerado demasiadamente leal ao nacionalismo.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Simon Starow foi capturado pelos alemães, que o enviaram para um campo de prisioneiros de guerra. Com a vitória dos aliados, foi libertado pelos americanos.

Após mais uma tragédia pessoal, Simon Starow viveu na Alemanha Ocidental antes de morar na Suíça, sempre, trabalhando como jornalista-correspondente para jornais ucranianos. A partir de 1949, migrou para os Estados Unidos e lá se tornou professor de língua ucraniana, no Defense Language Institute (DLI). Simon Starow e a esposa elaboraram o material didático para os cursos de língua ucraniana desse instituto.

Stálin e Putin: o dois atacaram a Ucrânia | Ilustração: Reprodução

Simon Starow prestou um grande serviço à humanidade ao escrever o livro que ora comento. Para isso, adotou o pseudônimo de Miron Dolot. “Holodomor — O Holocausto Esquecido” é um livro raro, que relata o sofrimento dos compatriotas desse autor durante a grande fome de 1932-1933. Homem acostumado a superar tragédias, Simon Starow foi testemunha e um dos poucos sobreviventes da tragédia pela qual passou e ainda passa sua terra natal. Seu livro é fundamental para entendermos as raízes da atual guerra que a Ucrânia trava contra a Rússia de Putin. Durante o governo do presidente Ronald Reagan, os escritos de Simon Starow foram fundamentais para a Comissão Especial criada para investigar as atrocidades cometidas pelo regime soviético, na Ucrânia.

Stálin e a institucionalização do Estado repressor

A partir de dezembro de 1929, uma onda de boatos em torno da coletivização das fazendas ucranianas se intensificou cada vez mais, levando a população a sentir-se mais insegura ante a nova realidade que atingiria profundamente os interesses dos grandes fazendeiros ucranianos. Esta, sem dúvida, era classe poderosa, mas desorganizada. Por essa razão, foi derrotada pelo poderoso exército soviético.

Nesse sentido, julgo ser de fundamental importância ressaltar que o conflito entre o regime totalitário liderado por Stálin e os fazendeiros ucranianos resultou numa tragédia que custou a vida de milhões de ucranianos. As feridas desse conflito mantêm-se abertas até os dias de hoje. Nesse contexto é possível entender que a Guerra da Ucrânia tem suas raízes no holocausto esquecido do Holodomor.

Posto isso, creio ser esclarecedor apontar fatos que revelam a panela de pressão na qual o regime stalinista foi impondo sua vontade a uma população assustada, que começaria a sentir o efeito dessas pressões no seu dia a dia. A respeito desse assunto, o autor retrata, com exatidão, o modo de agir da ditadura de Stálin e sua “monstruosa máquina de coletivização”.

Deixemos que Miron Dolot nos revele como esse instrumento de repressão agia contra seus opositores: “Foi posta em movimento [a máquina de coletivização]. Ela triturava, puxava e chutava. Era conduzida por seres humanos e agia sobre seres humanos. Era impiedosa e insaciável. Uma vez que fosse acionada, não podia ser detida, e um número crescente de vítimas era assim consumido”. Definitivamente, a solidária e pacata Verhuny já não existia mais. O medo e o temor não deixavam espaço para a nobreza de atos solidários, até então existentes naquela pequena cidade da Ucrânia. Aos fatos.

1º: liquidação dos kurkuls como classe social.

“Os kurkuls são nossos inimigos — gritou — e devemos exterminá-los como classe social”, assim se expressou um influente comissário do Partido Comunista quando se dirigia ao povo da pequena cidade de Verhuny. À medida que o conflito se acirrava, Stálin e seus comandados passavam a perseguir pessoas de menor poder aquisitivo. Resultado: o ódio aos ricos fazendeiros se estendeu à gente humilde de todo o país. Sendo assim, qualquer um — fosse ele um fazendeiro, rico ou pobre — poderia ser acusado de ser um kurkul. Bastava, para tanto, opor-se ao regime. Com essa medida, a ditadura stalinista pôde contabilizar mais alguns milhões de mortos no Holocausto do Holodomor.

2º: incentivo à denúncia

O regime estabeleceu um clima de total vigilância da população. Cabe aqui mencionar que o ambiente muito se assemelhava ao descrito pelo escritor inglês George Orwell no seu clássico romance “1984”. Neste, câmeras vigiavam 24 horas a população, assim, criando um verdadeiro big brother. No caso dos escritos que ora comento, o livro aponta o tratamento que o regime concedeu a um jovem de 14 anos que delatara o pai e a mãe, ambos mortos pela “monstruosa máquina de coletivização do regime”. Regime que fez questão de defender e propagar a atitude do garoto, considerada a de um patriota; e ele foi reconhecido como um verdadeiro herói nacional.

3º: tragédias pessoais do autor causadas por um regime opressor

Milhares de famílias ucranianas sentiram na pele as consequências de viver sob o mando de um Estado opressor, que priva a população de direitos básicos, tais como a liberdade e o acesso à justiça. Miron Dolot sabe bem o que é isso, uma vez que viu seu pai ser assassinado pelos bolcheviques, que isso fizeram cruelmente, sem provas, por suspeitaram que se tratava de um nacionalista. Anos mais tarde, uma nova tragédia acometeu à família de Miron Dolot. Desta vez, a vítima foi o irmão, acusado de ter atacado um funcionário do governo quando, na verdade, segurou o braço desse funcionário, dessa forma, impedindo que a mãe fosse assassinada.

O Estado opressor mostrou toda sua ira. Serhiy, esse era o nome do irmão de Miron Dolot, foi condenado a trabalhos forçados na obra de escavação do canal entre o Mar Báltico e o Mar Branco. Passados dois anos, morreu em consequência da exaustão do trabalho e das torturas às quais era constantemente submetido.

O regime ditatorial de Stálin deixou feridas abertas que não cicatrizaram ao longo dos anos. A atual guerra do regime do presidente Vladimir Putin contra a Ucrânia demonstra que essa constatação é uma verdade.

Estado opressor nas fazendas coletivas

Ter o controle absoluto das fazendas coletivas se tornou uma obsessão para o Partido Comunista da antiga União Soviética. Quem nos relata sobre esse assunto, no caso, o autor, viveu os horrores daqueles tempos mais que sombrios. São suas palavras: “Na fazenda coletiva, a nossa existência individual se tornou completamente dependente dos ditames do Partido Comunista e dos caprichos dos funcionários locais”. O autor enfatiza que “cada detalhe das nossas vidas era supervisionado. A nossa rotina diária estava sujeita ao mais restrito controle”. Controle que exigia completa obediência, sem nenhuma contestação.

Para controlar, o Partido Comunista institucionalizou o sistema político com organizações voltadas para esse fim. Veja-se o espírito de algumas dessas instituições.

Governo das fazendas coletivas

Cabia ao governo das fazendas coletivas apontar a direção do sistema político. O governo, enquanto governo, apontava os caminhos pelos quais as demais instituições deveriam seguir. Integravam o governo as seguintes instituições: o Partido Comunista, a Assembleia Geral dos Membros e o Conselho de Dirigentes.

Corte dos Kolhosps (fazendas coletivas) e Comissão de Auditoria. Essas duas instituições foram criadas com o fim específico de controlar e punir. Já o Komsomol (organização juvenil do partido comunista) e o Komnezam (comitê de camponeses pobres) foram concebidas com o escopo de dar apoio organizacional ao partido.

No âmbito das cidades como as do autor, os braços dessas instituições mostravam uma face autoritária, para não dizer cruel. A respeito desse assunto nos relata Simon Starow que “as punições ministradas pela corte eram severas. Não chegar pontualmente ao trabalho era um ato passível de punição sob a forma de uma sentença de trabalhos forçados com duração de um a três meses”. O autor aponta, também, para infrações consideradas de maior gravidade. Os crimes políticos eram considerados de alta traição. Nesses casos, a Corte Kolhosp submetia para apreciação da Corte Suprema ou dos órgãos de segurança do Estado, com a recomendação de sempre: aplicar a pena de morte ou envio do condenado para os campos de concentração.

O Estado opressor tinha um modo próprio de agir para manter o absoluto controle da população. Isso era válido tanto para controlados quanto para controladores. A respeito daqueles, muito já se falou neste espaço. A novidade revela-se no momento que a burocracia estatal destes, ao olhar para dentro de si mesmos, pune integrantes de seu corpo organizacional.

Veja a maneira como um alto funcionário do partido, camarada Khizhniak, dá voz de prisão a um membro de sua própria instituição: “Em nome do povo soviético, tenho a honra de prender você por sabotar o cumprimento de quotas de coletivização e entrega de grão na sua dezena”.

Ao agir dessa forma, o Partido Comunista fazia uso de bodes expiatórios e dava o seguinte recado: no sistema coletivo, a extrema vigilância vale para população, mas, também, vale para punir funcionários que cometam atos contra aos valores socialistas.

Salatiel Soares Correia, engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, é mestre em Energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos assuntos Energia, Política Desenvolvimento Regional e Literatura. É colaborador do Jornal Opção.

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