Grande sertão: veredas não morrerá jamais
18 novembro 2017 às 10h31
COMPARTILHAR
Hoje faz 50 anos da morte de João Guimarães Rosa, mas “a morte é para os que morrem”; seu único romance sobreviverá ao longo dos anos pela força da linguagem, seu vigor estético, e pelas frases marcantes que a trama imprime
“Grande sertão: veredas” é o único romance de João Guimarães. Uma das histórias que circulam sobre a criação do livro é que o autor o teria escrito com os restos da apuração para “Sagarana”, seu primeiro livro de contos. Os sertanejos que o acompanharam na histórica viagem sertão adentro, mais tarde teriam rido do volumoso livro, com 500 páginas maciças, sem divisão de capítulos, sem ilustração, nem organização em partes, nada. Que homens corajosos atravessariam aquele terreno imenso de palavras?
É bem provável que para cada cem pessoas que dizem ter lido “Grande sertão: veredas”, talvez umas dez realmente o fizeram por inteiro, conseguiram realizar a travessia. Ainda assim, não seria um número pequeno, porque o Brasil inteiro diz tê-lo lido. O número real, qualquer que seja ele, sustenta a permanência do romance em constante reedição.
Cinquenta anos depois da morte de Rosa, falecido em 19 de novembro de 1967, “Grande sertão: veredas” mantém-se de pé, com a linguagem singularmente arrebatadora, o rico diálogo com outras matrizes narrativas e a rosa dos ventos de sua estética. Até Harold Bloom, o gênio da leitura, já confessou que deu bola fora ao excluir Rosa de “Gênio”, seu monumental tratado sobre os cem maiores crânios da linguagem, incluindo Machado de Assis.
Se Machado de Assis é o maior autor brasileiro de todos os tempos, “Grande sertão: veredas” é o maior romance brasileiro de todos os tempos. A conta dessa contradição jamais será fechada, mas pode-se concluir que a obra machadiana é mais profunda como conjunto, entre os contos e os romances da fase madura.
Na comparação mano a mano, no entanto, entre qualquer romance do bruxo do Cosme Velho e o único do encantado escritor mineiro, este sai vencedor, embora o Brasil rural já não seja o mesmo. Logo, o romance de Rosa permanece intacto por qualidades intrínsecas, o universo comprimido numa bola de gude. Nesses 50 anos da morte do autor, vale ressaltar algumas características de sua maior invenção.
O feito do primeiro parágrafo de “Grande sertão: veredas” já sabemos. Riobaldo, velhinho e reumático, está na fazenda, dando uns tiros a esmo nos fundos de casa, quando chega um doutor da cidade, de Jeep, e puxa prosa. Os dois ficam à tarde inteira conversando sobre o sertão.
Riobaldo repassa sua experiência de vida como jagunço, na saga que se inicia no encontro dele com Reinaldo, de apelido Diadorim, ainda adolescentes, em que travam uma amizade que cruza toda a trama, entre aventuras de tiros e sossegos de um amor silencioso por fora, mas revolto por dentro.
Obviamente, conteúdo e forma se abraçam do modo mais rico e profundo nessa trama. Tempo e espaço se esgarçam e se costuram, se dilatam e se comprimem, ora buscando o sertão de fora, ora penetrando o sertão de dentro, de cada um, em meio ao espanto dos questionamentos sobre amor, amizade, morte, vida, loucura, bem e mal, Deus e o diabo, violência, coragem, desalento, sobrevivência, ciúme, dor, tristeza, esperança, erros e acertos.
Tudo isso meio que atravessando o corpo e a alma de Riobaldo e, evidentemente, o corpo e a alma da contingência de vida presente no romance, e o corpo e a alma do leitor sensível.
Escolhas estéticas
Como se vê, o romance de Rosa é muita coisa, mas se fôssemos brincar metaforicamente com os elementos da narrativa, diríamos que grande sertão é o coração de Riobaldo, e veredas são os olhos de Diadorim. Os olhos de Diadorim, para Riobaldo, seus “buritizais levados verdes”, que repousam no sertão; os olhos de Diadorim, a única passagem por onde Riobaldo, imenso e cheio de contradições, poderia acessar o interior do amigo, e lá dentro descansar.
Mas não houve nada disso, sabemos. Não houve nada disso porque tudo é muito complicado. A vida é complicada, o amor é complicado, o sertão é assaz profundo e complexo, e os olhos de Diadorim são verdes, largos, fundos e misteriosos. Nada facilita, nem as coisas externas, muito menos as internas, escondidas, escamoteadas até para o próprio sujeito. Quem não se lembra da venda da alma ao diabo por Riobaldo? Vendeu ou não vendeu? Nem ele sabe.
“Meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma… Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador…”, diz Riobaldo.
Ele passou o tempo todo achando que Diadorim era homem, e o tempo inteiro tentou rejeitar aquela afeição pelo amigo que ia além do sentimento de amizade. Os partidários de que Guimarães Rosa foi covarde e não abriu o texto para um romance gay (julgamento moral) defendem a ideia de que esse sentimento de amizade colorida nasceu da pulsão homossexual de Riobaldo. Acho pouco provável, embora se o fosse seria legítimo (julgamento moral).
Aquele sentimento nasceu justamente da capacidade instintiva dos corpos de se reconhecerem como desejosos um do outro. Diadorim era mulher. Riobaldo não sabia disso, mas seus poros, os aguçados sentidos internos de sua constituição corpórea sabiam.
Em todo caso, a discussão é inócua porque as escolhas e as estratégias de Rosa eram estéticas. Esta específica ambiguidade é permanente tanto quanto o é a discussão se Capitu traiu ou não Bentinho, em “Dom Casmurro” de Machado de Assis. Os modelos de Rosa para esta tensão entre corpos já existem há séculos na literatura árabe.
O “Livro das mil e uma noites”, traduzido para o português direto do árabe pelo professor da Universidade de São Paulo (USP), Mamede Jarouche, traz belos contos dessa feitura, tanto de mulher que se veste de homem e aí vem um homem e se apaixona, quanto de homem que se veste de mulher e se torna objeto de paixão de uma mulher por inteiro.
O escritor pernambucano Ariano Suassuna tinha uma tese que se junta a essa encontrada nas “Mil e uma noites”, de uma novela portuguesa da Idade Média intitulada “A donzela que foi à guerra”, que se veste de soldado e seu capitão acaba se apaixonando pelos olhos dele, sem saber que ele é ela.
O grande lance desses mal-entendidos é a tensão gerada no interior da trama e o drama ou tragédia que o desfecho da relação suscita no final.
Quem lê “Grande sertão: veredas” hoje sente a atualidade do texto de diversos modos. A força da linguagem continua intacta, como se sua engrenagem interna tivesse encontrado o moto perpetuo. “- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego.” A palavra ‘nonada’ é uma espécie de pilastra monumental que afirma e nega todo o fluxo de coisas dentro da trama.
Outro exemplo desse vigor narrativo é uma passagem mais para o fim do romance, quando a turma de Riobaldo enfrenta o bando de Hermógenes. Há uma imensa troca de tiros. Em meio a tantos parágrafos robustos, com muitas palavras alinhavando a subjetividade de Riobaldo e a objetividade do confronto, um paragrafozinho dá conta de toda a cena de violência: “Atirei. Atiravam.”
A fala do diabo
As dialogias externas também são inúmeras. Citarei os três casos mais óbvios, para além da aproximação, em termos de ambiguidade (Riobaldo é ou não homossexual?, vendeu ou não a alma ao diabo?), com “Dom Casmurro” (Capitu traiu ou não traiu Bentinho? O menino é filho ou não de Escobar?), em um triângulo amoroso completamente atual, entre Riobaldo (o macho alfa), Otacília (a mocinha) e Diadorim (o andrógino).
O diálogo mais enraizado em “Grande sertão: veredas” é com “Fausto”, de Goethe. E o mais interessante dessa dialogia não é a venda da alma ao diabo, tal como o doutor Fausto de Goethe fez junto a Mefistófeles. O mais intrigante é a inversão desses papéis no romance de Rosa.
Se em Goethe, Fausto é o doutor, e Mefistófeles (o diabo) se apresenta como um criado que servirá ao homem (embora seja uma arapuca), em Rosa, Riobaldo conversa com um doutor que vem da cidade. Talvez tenha vindo ali para lhe cobrar a alma. Mas é Riobaldo quem profere a fala do diabo.
Em “Fausto”, o doutor diz que Mefistófeles é metido a espionar os outros, e aí este retruca: “Tudo eu não sei: porém, ando bem informado.” Em “Grande Sertão: veredas”, Riobaldo fala algo parecido ao doutor: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.” Ou seja, age como o próprio diabo. E em determinado momento, desconfiado de ter ou não feito pacto com o demônio, questiona a si mesmo: “O demo então era eu mesmo?”
Pelo meio do caminho, Riobaldo desconfia de Deus e do diabo. E aí entra um novo diálogo, desta vez com a cultura judaica. Em “Sombras sobre o Rio Hudson”, publicado entre 1957 e 1958, romance indispensável para quem quer compreender a inserção da cultura judaica pós-Holocausto nas Américas, Isaac Bashevis Singer expõe as feridas abertas do povo judeu, que traz a memória carregada de dor e espanto, espanto com a capacidade humana de fazer o mal e com a sensação de que foi abandonado por Deus.
Em determinada passagem, um personagem faz uma observação que o narrador diz ser “ensinamento cabalístico, segundo o qual o Maligno é uma prova da existência de Deus.” A certa altura de “Grande sertão: veredas”, Riobaldo diz: “Quem-sabe, a gente criatura ainda tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá?” Eis aí um pensamento cabalístico. Logo, o diálogo não é com o romance de Singer, mas com a matriz do ensinamento da “Cabala”.
Mais adiante, Riobaldo reconstrói-se em Deus, em belas passagens. Em uma delas, ele diz: “Minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha?”. Em outra, conforta-se: “O existir da alma é a reza.”. E finaliza seu pseudomonólogo dizendo: “O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.”
O terceiro diálogo, ou intertextualidade, é com “Ulysses”, de James Joyce. Parece que Rosa não gostava dessa aproximação, porque o romance irlandês veio na segunda década do século XX com um caminhão de signos, influenciando todo mundo. O fato é que coisas de gênio se aproximam de algum modo. Mesmo não tendo lido “Ulysses” (só umas dez páginas, como Rosa alegava), há interseções interessante de linguagem entre os dois livros.
Por exemplo: em “Grande sertão: veredas”, Riobaldo conversa com Diadorim sobre o que fariam depois da guerra. Ele faz uma citação culta sobre espólios de guerra. Diadorim interrompe e não diz coisa com coisa, mas ao mesmo tempo fala tudo que podia sem dizer nada:
“Hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o que sabia…”
Em “Ulysses” (tradução de Caetano Galindo), no capítulo 17, desenrola-se um jogo de perguntas e repostas (espécie de diálogo no campo subjetivo, talvez uma lembrança de Bloom, ou uma invenção) sobre Bloom e Stephen Dedalus.
No trecho sobre a reação irritadiça de Bloom ao procurar uma chave no bolso e não encontrar, porque estava no bolso da calça que ele usara no dia anterior (da lembrança), lemos o seguinte:
“- Por que ele ficou duplamente irritado?
– Porque havia esquecido e porque se lembrava de ter se lembrado duas vezes de não esquecer.”
Galindo, o tradutor, na solércia de querer ser gênio também, precisa ser, é obrigado a pelo menos fingir que é, como ele mesmo diz, traduziu uma frase de Ulysses dizendo: “mire e veja”. A preguiça ainda não me deixou consultar o original de Joyce. Mas a sacada de Galindo é no mínimo interessante, porque, neste caso, Joyce, que morreu em 1941, ficticiamente, leu Rosa.
A perenidade estética, a fusão temporal no sujeito, as frases cortantes e marcantes são motivos para retornarmos sempre ao melhor romance brasileiro, que, publicado em 1956, vem envelhecendo bem. Guimarães Rosa morreu há 50 anos, mas para “Grande sertão: veredas”, 50 anos é tempo que se conte, não. “A morte é para os que morrem.” Não morrerá jamais, enquanto houver leitor sensível.