Thomas Wolfe, escritor norte-americano prolífico
11 dezembro 2018 às 09h42

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Que Thomas Wolfe é um grande narrador, um titã ou um gigante, já o sabia seu contemporâneo William Faulkner e assim o confirma toda a fortuna crítica em torno da obra do escritor – do romance ao conto. Considero este “O Trem e a Cidade[i]” uma pequena obra-prima de narrativas curtas. Terminei de lê-lo num vagão de um trem de grande velocidade, numa viagem que fiz de Helsinque a São Petersburgo, em setembro de 2016

Titã ou gigante? O homem, sabe-se, tinha quase dois metros de altura e lutou com os deuses para entrar no cânone da literatura norte-americana. Não pode ser confundido com o jornalista Tom Wolf, de grafia similar, porque Thomas Wolfe é escritor que tem várias polegadas acima na qualidade do texto e tem uma imaginação criadora única, que se nos mostra nos livros deixados.
Mesmo tendo morrido jovem, antes de completar 38 anos, Wolfe legou-nos obras importantes, merecendo ser lido por quem ama a prosa de ficção e as boas narrativas curtas (contos), embora em português o leitor só encontrará edições brasileiras dos contos.
O narrador do conto “Escuro na floresta, estranho como o tempo” é um americano que viaja pela França – situação similar a deste cronista, que o lia muitos anos depois –, viajando num trem russo e recebia o impacto do lirismo de Wolfe, donde extraiu trechos saborosos como este, em que Wolfe descreve a emoções da partida de um trem, das conversas que mantinham pessoas na gare com um passageiro do trem:
“As pessoas estavam falando a língua universal da partida, que não varia no mundo inteiro – a língua muitas vezes banal, trivial e até inútil, mas por isso mesmo curiosamente tocante, já que serve para esconder uma emoção mais profunda no coração dos homens, para preencher o vazio que há em seus corações ante o pensamento da partida, para servir de escuro, uma máscara que esconda seus sentimentos verdadeiros.
“E por isso havia para o jovem, o estranho e o forasteiro que via e ouvia essas coisas, um caráter emocionante e comovente na cerimônia da partida do trem. Enquanto ele via e ouvia essas atitudes e palavras que, transposta a barreira de uma língua estranha, eram idênticas àquelas que ele vira e conhecera toda a sua vida, entres os seus – ele de repente sentiu, como nunca tinha sentido antes, a terrível solidão da familiaridade, a percepção da identidade humana que tão estranhamente une todas as pessoas do mundo, e que está arraigada na estrutura da vida dos homens, muito além da língua que eles falam, da raça da qual são membros [ii].”
Simples excertos de sua obra, publicados separadamente como contos são poderosas unidades narrativas – diz um de seus biógrafos, o professor e crítico C. Hugh Holman [iii]. O leitor pode comprovar isso em contos disponíveis em português, como neste “O Trem e a Cidade”, traduzido por Marilene Felinto, ela própria boa narradora.
O lirismo das narrativas de Wolfe é apontado como exemplo da prosa de ficção em língua inglesa e o lirismo um ponto apreciado por muitos, como Fitzgerald, que teria escrito que “os trechos mais valiosos em Thomas são os mais líricos; ou melhor, aqueles momentos em que o lirismo mais se combina com seu poder de observação”. Uma amostra disso é dada ao leitor com essa passagem de “O Trem e a Cidade” por Marilene Felinto:
“A luz era cor de âmbar nos vastos aposentos escuros, protegidos contra a luz nova, onde em grandes camas de nogueira mulheres magníficas estendiam com ardor sensual suas pernas exuberantes. A luz era castanho-dourada como a manhã em grandes e reluzentes toras de mogno escuro, como a fresca douradura da cerveja, a casca do limão e o cheiro da essência de angustura. Depois, cor de bronze ao anoitecer nos teatros, reluzindo no calor e na solidez morena dos sopros bronzeados das mulheres, em roldanas, cornucópias e cupidos dourados, no excitante, forte e suavemente acastanhado cheiro de gente; e nos grandes restaurantes a luz era dourado-clara, mas densa e cilíndrica como cálidas colunas de ônix, mármore colorido com suavidade e calidez, vinho envelhecido em garrafas escuras, redondas, embutidas no tempo, e grandes corpos de mulheres loiras e nuas em tetos forrados de rosas. Depois a luz era profusa e exuberante, castanho-dourada como as largas campinas no outono; relevando em dourando como os campos na ceifadora, vermelho-bronze, cercados por enormes e ferrugentos feixes de milho, dominados por imensos celeiros vermelhos e pela tenta e vinosa fragrância das maçãs.”
Wolfe, por essa força lírica e pela “expressão retórica de atitudes pessoais” (HOLMAN, 1960) tem sua prosa comparada à poesia de Walt Whitman: “Com exceção de Whitman, nenhum escritor norte-americano celebrou a si próprio em tão grande escala, com tanta intensidade e senso de sua própria importância, como Wolfe o fez. Apesar de nunca ter conseguido a harmonia perfeita entre o seu ego e o profeta público que havia nele, insistia em representar ambos os papéis.”

Eu incluo Wolfe entre os prolíficos, narradores como o austríaco Robert Musil ou os franceses Balzac e Proust, que de maneira diversa, mas copiosa, geraram verdadeiros mundos fictícios como espelhos de suas próprias vidas vividas. Prolíficos, digo: no sentido de que a narrativa principal é um longo caudal formado de narrativas interconectadas como pequenos veios, canais, afluentes que são as unidades menores fluindo todas para uma visão grandiloquente do seu país e do ego do autor.
Esse “impulso épico” de Wolfe foi definido por Holman como “o desejo de definir na ficção o caráter norte-americano e de tornar simbólica a experiência da América” e isso é quase uma obsessão na obra de Wolfe.
É ainda de Holman a constatação de que, “dos escritores norte-americanos deste século [XX], Ernest Hemingway é o único que se iguala a Wolfe quando evoca a representação do mundo físico por intermédio de imagens surpreendentes, mas que parecem tocar os nervos expostos do leitor” – como nessa passagem de “O Trem e a Cidade”, em que o narrador reage diante do início da primavera que “naquele ano…chegara como magia e como música e como canção…”
“De repente a vida brotou de novo nas ruas que fervilhavam e lampejavam em milhões de pontos de cor e vida; e as mulheres, mais bonitas que as flores, mais cheias de sumo e suculência que as frutas, apareciam ali numa vívida corrente de amor e beleza. Seus olhos encantadores brilhavam numa ternura única; eram uma harmonia de sorrisos, lindos lábios de rosa rubra, uma pureza de leite e mel, uma singular composição de seios, quadris e coxas e cabelos esvoaçantes, um coro de beleza na exultante e triunfal harmonia da primavera.
“No quintal da velha casa de tijolos em que morei naquele ano, um daqueles velhos quintais com cerca numa casa nova-iorquina, um lote insignificante no quadriculado de um quarteirão, surgia da terra velha e cansada uma faixa de grama suave, e uma única árvore de verde claro e penetrante crescia ali.
“Naquele primavera, dia a dia eu observava o ligeiro desabrochar daquela árvore em seu glorioso momento de folhagem nova; até que um dia olhei para o interior de sua repentina e mágica verdura, e vi tremeluzirem raios que entravam e saíam, as cores que escureciam, alteravam-se, mudavam a olhos vistos a cada sutil alteração de luz, cada delicado e impalpável sopro de brisa, tão real, tão vívido, tão intenso que criava magia e mistério evocando todo o comovente sonho do tempo e de nossa vida sobre a terra; de repente a árvore era coerente com meu destino, e minha vida ganhava unidade em toda a sua concisão desde o nascimento até a morte.”[…]
“Imediatamente despertava dentro de mim um insustentável desejo de sair para as ruas. Eu sentia – e era um sentimento de ansiedade, dor e alegria intensas – estar perdendo algo de raro e belo se ficasse em meu quarto, estar permitindo que me escapasse alguma extraordinária felicidade e ventura. Parecia-me que algum enorme prazer, algum acontecimento auspicioso e magnífico – alguma realização de honra, de riqueza ou de amor – estava à minha espera em todos os lugares da cidade. Eu não sabia onde devia ir para encontra-lo, em qual das milhares de esquinas aquilo viria a meu encontro; mesmo assim sabia que estava lá, e não tinha nenhuma dúvida de que iria encontra-lo e captura-lo, de que iria alcançar a maior felicidade e força que qualquer homem já conhecera. Todo jovem da terra já sentido isso.”
Mesmo tendo morrido jovem com 38 anos incompletos, Wolfe legou-nos obras importantes – quatro romances, um ensaio e um livro de contos, merecendo ser lido por quem ama a prosa de ficção – romances e as boas narrativas curtas, embora se encontrem traduzidas em português apenas duas obras: o citado “O Trem e a Cidade” e “O Menino Perdido”, ambas pela Editora Iluminuras.
Wolfe foi retratado em filme, como relata o editor do Jornal Opção Euler de França Belém, em artigo de 2016, ao comentar “O Mestre dos Gênios”, que retrata a relação de Wolfe com seu editor Max Perkins:
“O Mestre dos Gênios”, de Michael Grandage, é um desses excelentes filmes que passam quase despercebidos — tanto que, em Goiânia, foi exibido apenas no Cine Lumière, no shopping Bougainville. A atuação dos atores Jude Law, como o escritor Thomas Wolfe, e Colin Firth, como o editor Max Perkins, é impecável. Não deixa de ser curioso que ingleses tenham representado homens lendários da cultura dos Estados Unidos. Nicole Kidman aparece de maneira discreta como Aline Bernstein, a amante de Thomas Wolfe. Aqui e ali, há licenças poéticas, com condensações necessárias tanto para chamar a atenção do espectador quanto para tornar a história adequada ao cinema.
Euler de França Belém assegura que, “mesmo sendo uma síntese da história complicada, mas produtiva entre Thomas Wolfe (1900-1938) e Max Perkins (1884-1947), o filme, inclusive o título, é, no geral, preciso. Se o leitor quer, porém, uma história mais bem contada, com nuances, deve consultar a biografia “Max Perkins — Um Editor de Gênios” (Intrínseca, 541 páginas, tradução de Regina Lyra), de A. Scott Berg, autor premiado com o Pulitzer”. Leia mais neste link.
Neste relacionamento que juntou amor e ódio, houve desavenças, como naturais a “pai adotivo” e filho, editor e autor: “uma das repetidas acusações que Wolfe faz contra [Max] Perkins é a de este era conservador, enquanto que Wolfe se tinha tornado o que chamava de revolucionário. Entretanto, faltam profundidade e sentido ao seu pensamento social. Pamela H. Johnson é talvez muito inflexível, quando diz: “Seu socialismo é o do jovem, baseado na fúria generosa, na piedade perplexa enfurecida; como a maioria dos intelectuais jovens e da classe média, ele procura o povo nos albergues e nos bancos dos parques à meia-noite. Mas como notou E. B. Burgum, “(…)ele era constituído de tal forma, que tinha que lutar sozinho. Naquela solidão, era incapaz de atuar como parte de um esquema social coordenado” – assevera seu biógrafo Holman.
O futuro da América que Wolfe defende na conclusão de “You can´t go home again” (publicado postumamente, em 1940) é, segundo Holman, “realmente um ato de fé – uma fé ainda baseada no espírito em oposição à matéria, no reerguimento da “nossa própria democracia” dentro de nós…Wolfe considerava-se com razão `revolucionário´, em contraste com Perkins; todavia, continuou sendo o advogado mais persuasivo de uma democracia esclarecida de classe média, produzida na América neste século [XX]”, conclui.
Por tudo isso e, mesmo com todas as “falhas” e imperfeições de sua obra, o leitor brasileiro merecia um quinhão maior de Thomas Wolfe, ter à disposição seus romances em traduções sérias e primorosas como as que Marilene Felinto fez dos contos pela Editora Iluminuras.
Adalberto de Queiroz, 63, Jornalista e poeta. Autor, entre outros de “O rio incontornável” (Editora Mondrongo, 2017).
[i] WOLFE, Thomas. “O trem e a cidade”, prefácio e tradução de Marilene Felinto. São Paulo: Iluminuras, 1990. 123 pp.
[ii] Do livro citado acima, cf. pág. 65-66; 20-21 et passim.
[iii] HOLMAN, C. Hugh. “Thomas Wolfe”. Tradução de Alex Severino. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1962.
