Retomo, como prometido, o tema a partir do livro “As imagens e os símbolos”, do estudioso romeno Mircea Eliade

E o retomo a partir do livro “As Imagens e Os Símbolos[i]”, de Mircea Eliade para ilustrar um ponto interessante do que ele designa de “simbolismo do centro” e, por extensão, os ritos de ascensão que têm lugar em um “centro” e por isso é poderosa a imagem e o simbolismo da escada na literatura.

O romeno Mircea Eliade (1907-1986): as imagens, os mitos e os símbolos na essência da boa literatura e ligados às mais secretas modalidades do ser. Foto: Reprodução

E para iniciar, convido o leitor a ler e meditar sobre este trecho:

“Todo microcosmo, toda região habitada, tem o que poderíamos chamar de um “Centro”, ou seja, um lugar sagrado por excelência. É nesse “Centro” que o sagrado se manifesta totalmente seja sob a forma de hierofanias elementares – como no caso dos “primitivos” (os centros totêmicos, por exemplo, as cavernas onde se enterram os tchuringas etc.) –, seja sob a forma mais evoluída de epifanias diretas dos deuses, como nas civilizações tradicionais.”

O estudioso romeno alerta que “não se deve considerar este simbolismo do Centro com as implicações geométricas do espírito científico ocidental”, ou seja, há uma pluralidade, um número ilimitado de “centros”. Assim, o “Centro do Mundo” deve ser tratado como “um espaço sagrado, que é dado por uma hierofania ou construído ritualmente”.

Não se trata, pois, de “um espaço profano, homogêneo, geométrico”; em consequência, essa pluralidade dos “Centros da Terra dentro de uma única região habitada não cria nenhuma dificuldade”. Desse simbolismo é que o leitor poderá depreender a importância dos mitos da “árvore sagrada”, da “Montanha Cósmica”, da “Árvore da Vida”, et cetera.

Se o leitor seguir com atenção o raciocínio de Eliade poderá entender que “na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência”, isto é, como já foi demonstrado pelos mitólogos: “para o mundo arcaico o mito é real porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade: o sagrado.

Desse espaço sagrado, deste “Centro” é que partem as comunicações do homem e a divindade, constituindo-se o “Centro” em “ponto de interseção” – o Inferno, o centro da terra e a porta do céu aí encontram uma “passagem cósmica” de uma a outra região.

Essa passagem cósmica pode ser ilustrada observando-se atentamente os ritos de ascensão que têm lugar num “Centro” e Eliade anota que “um número considerável de mitos fala de uma árvore, de um cipó, uma corda, um fio de aranha ou de uma escada que ligam a Terra ao Céu, e através dos quais certos seres privilegiados sobem efetivamente ao Céu.”

O escritor goiano Ney Teles de Paula analisou a importância d´ “A escada de Jacó[ii]” em livro homônimo que inicia com estas palavras: “A escada de Jacó é um símbolo poderoso à luz da psicologia profunda, da religião e do mais puro enfoque místico da ascensão do homem aos portões celestiais.”

Mircea Eliade e o poder dos mitos, das imagens e dos símbolos para a vida humana
Gustave Doré: “O sonho de Jacó” analisado por Ney Teles de Paula

“Está em Gênesis 28,12, diz Teles de Paula: “Eis uma escada erguida sobre a terra, sua extremidade atingia os céus; enviados [anjos] subiam e desciam por ela.” Além do simbolismo da verticalidade cósmica entre céu e terra, evidencia-se, nesta passagem bíblica, outro simbolismo complexo, o do anjo.” 

Para o escritor Marc Girard, afirma Teles: “o episódio visa a retratar a origem enigmática de um costume ou de um fato, o culto imemorial do santuário de Betel. Em hebraico, esse nome próprio significa ´casa de Deus`. Durante o sono, Jacó se dá conta de que o lugar santo é realmente ´casa de Deus e porta do Céu`; o nosso símbolo de verticalidade cósmica (e real). No fundo, que foi que se passou com Jacó? Em sonho, seu espírito se eleva até o alto, onde vê um penhor de proteção divina e de onde tira a segurança necessária para continuar a viagem”.

Voltando a Eliade: “A escalada ou ascensão simbolizam o caminho rumo à realidade absoluta; e na consciência profana, a compreensão dessa realidade provoca um sentimento ambíguo de medo e felicidade, de atração e repulsa etc.” Em todo caso, registra-se uma “ruptura do nível ontológico: através do amor, da morte, da santidade, do conhecimento metafísico, como diz a Brihadâranyaka Upanisad, do “irreal para a realidade”.

No Canto XXI de “Paraíso[iii]”, sintetiza o tradutor Ítalo Eugênio Mauro: “Dante olha para Beatriz, que lhe diz estar impedida de lhe sorrir porque agora o seu acrescido fulgor não seria suportado pela sua vista. Eles estão no sétimo céu, o de Saturno, onde encontram-se as almas dos contemplativos.”

Surge à frente deles uma escada de ouro altíssima cujo topo a visa de Dante não alcança, da qual descem inúmeros espíritos, um dos quais se aproxima de Dante, que lhe pergunta qual a razão que o fez, entre todos, procura-lo e, em seguida, a explicação pela falta de danças e cantos, nesse sétimo céu, à diferença de todos os anteriores. Os sentidos mortais de Dante, é a resposta, não aguentariam a intensidade do seu som, nem o fulgor do riso de Beatriz, como ela já lhe dissera; quanto à primeira pergunta, ela seria irrespondível até para um serafim.

Dante não insiste e só lhe pede se identificar. Ele é Pedro Damião, que foi monge camaldolês em Cátria, e depois no mosteiro de Santa Maria em Ravena e, já bem velho, foi cardeal. Daí passa para uma violenta denúncia de seus sucessores, que faz acorrer à sua volta, da escada de ouro, inúmeros lumes que o festejam com um grito de solidariedade ao qual os sentidos de Dante não resistem.”

Alçado estás ao sétimo esplendorNoi sem levati al settimo splendore,
Que, sob o peito de Leão ardenteChe sotto ´l petto del Leone ardente
Mistura aos raios seus o outro valor.Raggia mo misto giú del suo valore.
  
Fixa, ora, atrás dos olhos teus, a menteFicca di retro a li occhi tuoi la mente
E deles faz espelhos à figuraE fa di queli specchi a la figura
Que nesse espelho te será aparenteChe ´n questo specchio ti sarà parvente.
  
Quem pudesse idear joia mais puraQual savesse qual era la pastura
Que contemplar o aspecto seu beatoDel viso mio ne l´aspetto beato
Quando voltei-me pra outra postura,Quand´io mi trasmutai ad altra cura,
  
Entenderia o quanto me foi gratoConoscerebbe quanto m´era a grato
Obedecer a quem aos Céus me portaUbidire a la mia celeste scorta,
Ao cotejar com um o outro fato.Contrapesando l´un com l´altro lato.
  
Dentro desses cristal que o nome portaDentro al cristallo che ´l vocabolo porta,
Rodeando o mundo, do seu caro guiaCerchiando il mondo, del suo caro duce
Sob o qual toda má intenção foi morta,Sotto cui giacque ogne malizia morta,
  
Como um raio de sol vi que subiaDi color d´oro in che raggio traluce
Uma escada tão alta que ascender-Vid´io un scaleo eretto in suso
Lhe ao fim minha visão não poderia.Tanto, che nol seguiva la mia luce.
  
E vi também por seus degraus descerVidi anche per li gradi scender giuso
Tantas luzes, que achei que todo lumeTanti spledor, ch´io pensai ch´ogne lume
Que haja no céu, lá viesse verter.Che par nel ciel quindi fosse difuso.

O escritor católico franco-americano Julien Green é citado por Eliade como um exemplo da “redescoberta espontânea desse simbolismo primordial” da escada:

Julien Green anotou em seu “Diário” de 04 de abril de 1933: “Em todos os meus livros, a ideia de medo ou de qualquer outra emoção forte parece estar ligada de maneira inexplicável a uma escadaria. Percebi isto ontem, quando revia todos os romances que escrevi… Eu me pergunto como pude repetir tantas vezes esse fato sem perceber. Quando era criança, eu sonhava que me perseguiam numa escadaria. Minha mãe teve os mesmos medos na sua juventude; talvez tenha restado algo em mim…”

É o caso das cenas finais do romance “Mont-Cinère” em que Julien Green diz: “Aterrorizada com a violência do marido, Emily fugiu para a sala de jantar e, depois, subiu precipitadamente a escada, até onde ele a seguiu gritando. Teve tempo de se refugiar no quarto e trancar a porta a chave; depois, desabou no chão, arrasada.” Daí até o clímax do romance o leitor percorrerá duas ou três páginas.

E por ora, deixo meus seis leitores com essa incursão por mais alguns trechos do inesgotável acervo que nos legou o romeno Mircea Eliade, de onde os jovens escrutinadores de obras literárias, frutos da imaginação de nossos escritores parecem encontrar fonte duradoura par seus trabalhos, até porque como diz o escritor Alberto Mussa:  “o patrimônio da mitologia traduz problemas essenciais da condição humana” – e “os mitos são a essência, o fundamento da literatura.”

De Dante a Green, passando por Guimarães Rosa, de Rodrigo Duarte Garcia a Alberto Mussa, o leitor atento verá que há sempre uma “deslocação” de imagens, símbolos, mitos para personagens que trafegam tentando nos levar por um itinerário que nos conduz a um “Centro”, caminho este que “está cheio de obstáculos” (Eliade) e, no entanto, “cada cidade, cada templo, cada casa, encontra-se no Centro do Universo. Os sofrimentos e as “provocações” vivenciados por Ulisses [Homero] são fabulosos e, no entanto, qualquer volta ao lar “equivale” ao retorno de Ulisses à Ítaca.”

Sim, “tudo isso parece mostrar que o homem só pode viver em um espaço sagrado, no Centro” e se neste homem ainda palpita certa “nostalgia do Paraíso”, trata-se de um anseio ancestral de reencontrar a condição divina. Ou, para repetir o mestre romeno: como um cristão diria, para reencontrar a condição anterior à Queda.

Adalberto de Queiroz, 64, jornalista e poeta. Autor de “O rio incontornável” (Poemas), editora Mondrongo, 2017.


[i] ELIADE, Mircea. “Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso”. Prefácio Georges Dumézil; trad. Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

[ii] PAULA, Ney Teles de. “A escada de Jacó: artigos.” Goiânia: Edit. Kelps, 2005, 158 pp.

[iii] ALIGHIERI, Dante (1265-1321). “A divina comédia: paraíso”, Canto XXI, trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998, pág. 149 et passim.