De Gaulle: episódios que consolidam a liderança de um grande estadista (II)

29 outubro 2023 às 00h02


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Comentário sobre o livro “Liderança — Seis Estudos Sobre Estratégia” (Objetiva, 544 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), de Henry Kissinger.
Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
A seguir, apresento duas distintas situações em que a determinação do líder francês foi imprescindível para conduzir a nação em momentos de turbulência. Devido à limitação de espaço, optamos pelos seguintes episódios que envolveram a França na época do presidente Charles de Gaulle: a questão da Argélia e a Quinta República.
Argélia
Conquistada pela França em 1830, a Argélia esteve, desde então, sob o domínio francês. Era uma espécie de joia das colônias francesas de além-mar. Henry Kissinger relata, em seus escritos, que “o litoral argelino era constitucionalmente tratado como um componente integral da França metropolitana”.
Então fora do governo, De Gaulle recebeu em 29 de maio de 1958 um chamamento do presidente René Coty para formar um governo, tornando-se assim o último presidente do conselho dos ministros da IVª República, com a missão de, pela segunda vez, salvar a França e resolver os conflitos ligados à luta pela independência da Argélia. Iniciada em 1954, a chamada guerra da Argélia, só terminou em 1962 com os acordos de Évian, após ter custado a vida de cerca de 500 mil pessoas (400 mil argelinos e 100 mil franceses). O general aceitou o cargo, mas com uma condição: que fosse não pelo chamamento político, e, sim, por uma solicitação constitucional.


Ante o exposto é oportuno levantar a seguinte dúvida: que ações implementadas por De Gaulle expressam os atributos considerados imprescindíveis para liderança estratégica de que tanto nos fala o autor em seus escritos?
Eis a resposta: ao impor essa exigência, ele se viu livre do sistema político para efetuar as reformas institucionais que tinha em mente. Além disso, soube manter certa ambiguidade entre as duas partes em conflito, que poderiam ter chegado a uma verdadeira guerra civil. Ninguém estava certo do que realmente tinha em mente o futuro inquilino do Palácio Eliseu. No entender de Henry Kissinger: “Se [Charles de Gaulle] tivesse partilhado seu programa, ele teria corrido o risco de alienar todas as facções ou levá-las a uma ação precipitada”. Deu certo.
Na condição de presidente da República Francesa, De Gaulle teve poder para enfrentar a questão argelina com maior objetividade e abrangência. Com a caneta na mão, ele tinha poder constitucional para dissolver o Parlamento e convocar novas eleições.
Ciente de seu novo papel na história da França, então, ordenou que o general Maurice Challe, comandante das forças armadas francesas na Argélia, lançasse uma ofensiva contra os rebeldes da ALN (exército de libertação nacional), braço armado do partido nacionalista FLN (frente de libertação nacional) o da área rural da Argélia, no intuito de eliminar todos os focos de resistência e de sabotagem. A mente estratégica do presidente visava seguir dois caminhos distintos. De acordo com o autor, “o propósito era cristalizar suas duas opções: integrar a Argélia à França por meio da vitória militar ou, caso isso falhasse, desacreditar o argumento do exército contra um acordo político”.


Posto isso, creio ser oportuna a seguinte observação: no caleidoscópio da vida pública de Charles de Gaulle, três figuras seriam as mais relevantes: a primeira, do militar que combateu na Primeira Guerra Mundial; a segunda, do militar e político que, por duas vezes, assumiu com sucesso a liderança do processo político para salvar seu país das crises; e por fim, a do presidente, que fez a França ser respeitada perante o mundo.
Após chamar para si, em 1940, a responsabilidade de resgatar a França de uma catástrofe nacional e receber, em 1958, uma chamada para salvar um governo institucional, de Gaulle estava pronto para enfrentar o desafio de ser o primeiro-ministro de seu país, último passo antes de tornar-se presidente da república. Com ele veio um período de crescimento institucional chamado Quinta República.
É dela que falaremos a seguir. Antes, porém, para o melhor entendimento, apresento um resumo bastante sucinto das Quatro Repúblicas que a antecederam.
Quatro primeiras repúblicas
Atenho-me agora a construir um histórico sucinto que servirá de referência para avaliar as ações do governo de Charles de Gaulle, tendo como parâmetro de análise a metodologia proposta por Henry Kissinger. Esta será útil para aquilatar a estatura do líder analisado sob a ótica do caráter, da coragem e do sucesso da estratégia implementada, pelo general Charles de Gaulle como presidente da República francesa.


Proclamada no dia 21 de setembro de 1792, a Primeira República enquadrou-se no espírito da Revolução Francesa. Robespierre foi o grande líder de uma revolução concebida para atender as elites burguesas do país. A Primeira República foi decisiva para a mudança no sistema político, que deixava de ser uma monarquia constitucional para se transformar em uma república. Vale ressaltar que esse foi um período da França de intensas disputas pelo poder. Ela ficou em vigor até 1804, quando Napoleão Bonaparte se autoproclamou imperador dos franceses
No curto intervalo de tempo compreendido entre 1848 e 1851, eclodiu o período da Segunda República. Ressalta-se que essa revolução se integrou a um desejo de mudança que induziu inúmeras outras revoluções em toda a Europa. O fato mais relevante a observar foi o afastamento da monarquia de Orléans com a chegada ao poder de Louis-Napoleão Bonaparte, primeiro como presidente da república e, a partir de 1852, como imperador Napoleão III.
A chamada Terceira República foi concebida para durar pouco tempo. Entretanto perdurou de 1875 a 1940. Os acontecimentos mais marcantes que ocorreram na constituição da Terceira República foram consequências da derrota francesa na guerra Franco-Prussiana em 1871.
Durante a Terceira República, Paris tornou-se o centro cultural do mundo, em um período que ficou conhecido como “Belle Époque”. Participaram da Belle Époque intelectuais, pintores, escultores, escritores: “Paris É uma Festa”, como relata o escritor norte-americano Ernest Hemingway num livro póstumo publicado em 1964 sobre suas memórias na década de 1920 na capital francesa.


No transcorrer da Terceira República, a França teve expressiva expansão colonial, principalmente no norte e oeste da África. A Indochina francesa e a Polinésia expressam tal feito da França nesse período. Do ponto de vista político, perdurou a política de apaziguamento, tentando ser um contrapeso à expansão da Alemanha nazista liderada por Adolf Hitler. A assinatura do armistício da França com a Alemanha decretou o fim da Terceira República em 1940.
Em vigor de 1946 a 1958, a Quarta República expressa o grau de degradação do Estado francês impregnado da praga da corrupção, do autoritarismo e do colonialismo. Do ponto de vista internacional, o governo optou, em um ambiente de Guerra Fria, por apoiar os Estados Unidos contra a União Soviética. No transcorrer desse período, ocorreram reformas do Estado centradas no social. Um bom exemplo de política social reside na elevação dos serviços de seguridade social destinados a minimizar a desigualdade em todo o território francês (instauração do SMIG —salário-mínimo garantido — e de 3 semanas de férias remuneradas para os trabalhadores). A liderança política de então, o presidente René Coty, liderou o país até o chamamento do general Charles de Gaulle, em 1958.
De Gaulle e a Quinta República
Se esta resenha-ensaio terminasse aqui, o general Charles de Gaulle já teria seu lugar na história de seu país. Conforme o critério de liderança proposto por Henry Kissinger, fica evidente a importância do presidente nos principais eventos ocorridos no sistema político francês desde a Primeira Guerra Mundial. Com o advento da Quinta República, Charles de Gaulle, enfim, assumiria o poder na França como seu presidente. A longa trajetória do capitão do exército francês na Primeira Guerra Mundial, repleta de coragem e caráter, direcionada pela estratégia da vontade, foi decisiva para sua ascensão ao cargo máximo da nação.
No contexto da chamada Quinta República, a presença desse líder foi absolutamente fundamental para dar um novo rumo ao sistema político francês. Muito contribuiu para isso a grande experiência que o novo presidente tinha do funcionamento das engrenagens do poder em seu país.
Na Presidência, o novo inquilino do Palácio Eliseu liderou a elaboração de uma nova Constituição, que procurava fortalecer o presidente e enfraqueceu o Parlamento. O regime político francês é semipresidencialista: o presidente da República é eleito chefe de Estado pelo sufrágio universal direto, para um mandato de 7 anos. Cabe ao presidente nomear o primeiro-ministro, que é o chefe do governo e precisa formar uma maioria parlamentar. Além disso, de Gaulle tinha poderes para dissolver a Assembleia Nacional, o que ele fez em 2 oportunidades, em 1962 e em 1968, no intuito de resolver as grandes turbulências provocadas pelas crises entre o Parlamento e o Executivo. Certamente, a condição de líder máximo de seu país permitiu a De Gaulle efetuar as reformas tão necessárias para o desenvolvimento econômico e social da França. No âmbito internacional, o controle da defesa e da política externa ficou sob a responsabilidade do chefe do Executivo.
O presidente tinha também a possibilidade de consultar diretamente a população em momentos importantes, por intermédio de referendos.
De Gaulle recorreu a esse instrumento em momentos cruciais, como no caso da mudança do processo de eleição do presidente da república, que passaria a ser definido, a partir de 1962, pela via direta e o voto universal. A delicada questão da Argélia foi resolvida pela consulta direta da população, que foi chamada a optar por uma das três soluções propostas no referendo: fusão, associação ou independência. Outro grande feito que pode ser creditado à liderança desse presidente foi sua política voltada para os países africanos que mantinham com a França, até então, uma relação de dependência.
Ao promover o conceito de “Comunidade Francesa”, com a integração com a metrópole, o presidente permitiu à população de cada um dos 14 países francófonos decidisse o futuro que desejaria ter ante as duas possibilidades propostas: aprovar a Constituição e integrar a Comunidade Francesa ou ganhar a independência imediata. Como resultado, todos os países, exceto Camarões e Argélia, optaram por entrar no conceito de Comunidade Francesa proposta pelo presidente de Gaulle, que tinha sempre sua lupa voltada para construção do futuro.
Embora o conceito de Comunidade Francesa tenha sucumbido dois anos depois, devido aos arroubos nacionalistas, essa instituição foi decisiva para que o olhar dos países francófonos sobre a metrópole mudasse para uma direção de maior confiança. O estadista de Gaulle tinha conquistado os corações e as mentes de milhões de africanos. Agindo assim, ele evitou boa parte das guerras de libertação nacional. Em um relatório elaborado por Henry Kissinger para o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, ele sintetizou o que era a política africana de Gaulle: “espelhava [a política] seu conceito de grandeza tanto quanto de gratidão”, mais adiante, ainda nesse relatório, Henry Kissinger conclui: “De Gaulle fez da França uma grande potência”.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos temas política, energia, literatura e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.
Leia a primeira parte do texto de Salatiel Correia