De Gaulle: a liderança do Estadista diante de turbulência — o estadista entre estadistas (III)

18 novembro 2023 às 16h42

COMPARTILHAR
Comentário sobre o livro “Liderança — Seis Estudos Sobre Estratégia” (Objetiva, 544 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), de Henry Kissinger.
Salatiel Soares Correia
A expansão colonial da França no continente africano gerava muitas turbulências para o presidente e sua esposa Yvonne. O casal presidencial escapou de um atentado em agosto de 1962, organizado por membros da OAS (organização do exército secreto), colonos descontentes com a declaração da independência dada à Argélia. E é exatamente nesses momentos de dificuldade que a liderança do estadista deve apontar para a direção que o sistema político tem de seguir.
Em seus escritos, Henry Kissinger relata como o presidente Charles de Gaulle enfrentou, em 21 de abril de 1961, o putsch de Argel, fomentado por 4 generais franceses cinco estrelas, insatisfeitos com o que consideravam uma política de abandono da Argélia francesa. São em momentos assim que a figura do estadista se engrandece. Reproduzo a seguir a narração do autor sobre o episódio: “De Gaulle foi à TV ao fim do dia, vestindo seu uniforme de general. Após uma austera descrição da situação em Argel, dirigiu-se ao exército francês ordenando que as barricadas fossem incondicionalmente destruídas: devo ser obedecido por todos os soldados franceses. Nenhum soldado deve, em momento algum, e nem mesmo passivamente, associar-se à rebelião”. As palavras do líder de todos os franceses foram rigorosamente cumpridas pela caserna. “Foi uma demonstração extraordinária de liderança ‘carismática’”, assim relatou Henry Kissinger em seus escritos. O golpe fracassou, mas o ódio ao colonizador não. Pouco tempo depois, vieram as rebeliões, que deixaram uma herança de sangue que os números a seguir revelam.

O balanço da guerra da Argélia não podia ser mais trágico. Uma breve consulta ao “doutor” Google revela a dimensão do custo humano causado pelos conflitos para a libertação da Argélia. Aos números: 400 mil argelinos (250 mil combatentes e 150 mil civis) mortos, 30 mil soldados franceses mortos, 15 mil civis franceses mortos e cerca de 50 mil “harkis” (voluntários argelinos que serviram como auxiliares no exército francês em unidades paramilitares).
Ao considerar as ações do novo governo argelino, constataremos medidas que causaram impacto na vida das centenas de milhares de colonos franceses que viviam nas zonas rurais da Argélia. A esse respeito, o autor apresenta um relato preciso que expressa duas consequências: o assassinato de milhares de “harkis”, considerados traidores da pátria, e a emigração de mais de 800 mil colonos franceses para a metrópole.
“Oitocentos mil colonos franceses foram expulsos da Argélia pelo novo regime – que combinava aspectos de islamismo, socialismo e nacionalismo árabe – ou deixados à própria sorte pouco após a assinatura dos acordos de paz em Évian. Receando a violência e tendo suas propriedades confiscadas pelo governo argelino, 150 mil dos 200 mil remanescentes emigraram entre 1963 e 1970 para a França metropolitana”.
Pior sorte tiveram os harkis mulçumanos leais à França: com a saída do exército francês da Argélia, ficaram completamente desprotegidos. Milhares deles foram brutalmente assassinados, pois os donos do poder da Argélia os consideravam como traidores.
Um fato positivo desse desenlace sangrento pode ser atribuído ao considerável aumento de recursos que a França obteve com a independência da Argélia, graças à expressiva redução de custos que tinha o país de Voltaire por não ter de enviar recursos para sua colônia, que se tornara independente.
Encerro a questão da independência da Argélia com a seguinte indagação: que contribuição trouxe a independência argelina para ajudar a delinear a estatura de estadista do presidente de Gaulle? Eis a resposta: ele manteve absoluto controle sobre o sistema político, ao qual apontava a direção.
Inserido em um presidencialismo fortalecido, o chefe do executivo francês, dependendo da situação, ora assumia o papel de militar, ora de político. No caso das colônias africanas, permitiu que elas escolhessem o próprio destino em continuar ou não ligadas à metrópole colonizadora. Agindo assim, o presidente evitou um enorme derramamento de sangue; por sua vez, nos momentos de maior tensão dos conflitos na Argélia, ele assumiu o papel de militar ao ordenar que seus comandos agissem para estancar um golpe que visava derrubar o governo constituído. De Gaulle teve coragem para tomar decisões e caráter para manter a estratégia da vontade de fazer da França uma grande potência.
De Gaulle e Adenauer
Charles de Gaulle e Konrad Adenauer são dois estadistas de mesma estatura. Se, por um lado, Adenauer demonstrou coragem ao enfrentar o poderoso Hitler; por outro lado, de Gaulle mostrou essa mesma coragem ao afirmar suas convicções discordantes em relação aos rumos da guerra, defendidos pelo mais poderoso marechal do exército francês – Pétain.

Tanto de Gaulle quanto Adenauer tinham o sonho nacionalista de uma França e de uma Alemanha grande, respectivamente. Para isso, ambos usavam estratégias diferenciadas a fim de chegar no mesmo objetivo. De Gaulle, com sua estratégia, enfrentou situações adversas em vários momentos, como na questão da independência da Argélia, nas inúmeras reformas da Constituição, sendo sempre um líder inconteste. Não se pode deixar de citar, ainda, a dimensão humanista desse líder ao possibilitar aos países colonizados pela França serem independentes ou associados à metrópole. Uma escolha pela via democrática, pela consulta à população. Ao agir assim, o presidente da França evitou enormes derramamentos de sangue.
Konrad Adenauer, conquanto tenha recebido a herança maldita de um país destruído pela Segunda Guerra Mundial, teve a grande visão de inserir seu país em uma Europa gloriosa. Além disso, o chanceler alemão reconheceu os erros do passado, investindo bilhões de dólares na economia israelense. Embora o estadista alemão não tenha obtido o perdão pelo holocausto, seus esforços foram reconhecidos pelo governo israelense, que o convidou para visitar Israel.
De Gaulle muito ajudou e pouco pediu a Adenauer em contrapartida dessa ajuda. A esse respeito, Henry Kissinger relata que ele desconsiderou séculos de hostilidades entre os países para oferecer o apoio francês à Alemanha e à sua busca por uma identidade europeia.”
No centro do capitalismo mundial, os Estados Unidos assumiram um novo papel perante a nova ordem mundial. É nesse contexto que foram concebidos o Plano Marshal, que teve sua importância na extraordinária recuperação das economias europeias destroçadas pela Segunda Guerra Mundial, e a institucionalização da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), identificada por muitos sob a influência direta dos Estados Unidos. Porém, o estadista Charles de Gaulle entendeu ser a OTAN uma intromissão dos norte-americanos na região, com a presença de milhares de soldados americanos em solo francês. A coragem para enfrentar a nação mais poderosa do mundo era típica desse estadista que elevou a autoestima do povo francês, como veremos a seguir.
De Gaulle e a Otan
Por que razão o então presidente Charles de Gaulle rebelou-se contra a participação da França na OTAN? A ousadia das ações do chefe do executivo francês mensura a solidez de seu caráter. Kissinger aponta algumas razões que procuro, a seguir, evidenciar.
Em primeiro lugar, recuperar a identidade francesa preservando, para isso, a liberdade de ação. De Gaulle, estava absolutamente convicto disso e, por essa razão, opôs-se, de peito aberto, à OTAN.
Em segundo lugar, com sua astúcia, de Gaulle percebeu o interesse americano pela energia nuclear, energia essa na qual a França tinha certo domínio tecnológico. Por essa razão, o país de Voltaire queria livrar-se da tutela dos americanos e desenvolver suas próprias pesquisas.
Em terceiro lugar, devido à vulnerabilidade geográfica da França, ele opôs-se aos vários esquemas de desengajamento das forças dos Estados Unidos. Para ele, essa retirada não poderia ser simétrica, pois a situação geográfica da França deixaria o exército norte-americano distante demais, e o soviético perto demais.
Para Henry Kissinger, “o estilo assertivo do presidente de Gaulle resultava de uma combinação de confiança pessoal e experiência histórica”. Em outras palavras, de Gaulle estava disposto a cooperar desde que fossem atendidos aos interesses da França e dos Estados Unidos.
Toda e qualquer tentativa de impor decisões americanas que fossem de encontro aos interesses da França, ele as combatia com coragem e determinação. De Gaulle não se vergou ao poder imperial norte-americano.
Para isso, propôs um acordo tripartite entre França, Inglaterra e Estados Unidos como forma de proteção contra eventuais tentativas de atrair esses países para um confronto nuclear. Além disso, ele propôs que cada um desses países teria o poder de vetar eventuais decisões que não estivessem de acordo. Enfim, o que desejava o líder francês era, sobretudo, evitar o controle dos Estados Unidos sobre a França, até então, envolvida em um forte sentimento de grandeza.
Agindo assim, o estadista francês procurava manter sob controle as decisões que poderiam contrariar os interesses do país. A grande França para os franceses era algo do qual jamais ele abriria mão.
Nesse sentido, transcrevo dos escritos do autor, uma série de eventos que levou o estadista a tomar uma das decisões mais corajosas que um político dessa envergadura poderia tomar: retirar a França da OTAN mesmo sabendo que essa decisão contrariava os interesses dos Estados Unidos na região. Vejamos:
“De Gaulle reagiu ao silêncio estadunidense e britânico demonstrando que, na realidade, tinha opções. Em março de 1959, retirou a frota mediterrânea francesa do comando integrado da OTAN; em junho do mesmo ano, ordenou a remoção de armas nucleares americanas do solo francês. Em fevereiro de 1960, a França conduziu seu primeiro teste nuclear no Sahara argelino. Finalmente, em 1966, a França foi completamente retirada da estrutura de comando da Otan”.
A estratégia da vontade impregnada do nacionalismo francês mostrou que o presidente de todos os franceses, Charles de Gaulle, tomara a atitude correta e, em 24 de agosto de 1968, o país de Victor Hugo realizou, com absoluto sucesso, o primeiro teste termonuclear (bomba de hidrogênio) no atol de Fangataufa, na Polinésia francesa, tornando-se a quarta potência nuclear, após os EUA, a URSS e a Grã-Bretanha. Uma potência liderada por um militar nacionalista. Nos tempos do então presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, o adorável rebelde Charles de Gaulle continuou a divergir do jovem presidente.
Churchill e De Gaulle
Winston Churchill e Charles de Gaulle foram dois estadistas da maior grandeza. Ambos testados nas guerras. O estadista inglês participou da Guerra dos Bôeres na África do Sul. Lá, Churchill foi preso e conseguiu realizar uma fuga espetacular da prisão. De Gaulle, do seu lado, participou da Primeira Guerra Mundial, e foi ferido e preso na batalha de Verdun, permanecendo nessa condição por dois anos na Alemanha.
Churchill, primeiro-ministro da Inglaterra, Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, e Josef Stalin, ditador da Rússia, formaram o triunvirato que comandou as forças aliadas na Segunda Guerra Mundial, eles eram o poder de fato, enquanto de Gaulle era o poder rebelde. Rebelde pelo fato de não aceitar a tutela que líderes como Roosevelt queriam impor. O líder francês, nacionalista nato, via, em primeiro lugar, os interesses de seus país.
Por essa razão, rompeu com o braço operacional dos norte-americanos na Europa: a OTAN.
No entender de Henry Kissinger: “Esses líderes gigantes possuíam ambos dotes analíticos incomuns e um senso especial para as nuanças da evolução histórica. Contudo, deixaram diferentes legados e beberam de fontes diferentes. Churchill cresceu fora da política britânica enquanto de Gaulle compreendeu melhor sua época e correu maiores riscos do que todos seus contemporâneos”.
O estadista é o líder que a nação reconhece e chama nos momentos de grandes turbulências. Cabe ao líder apontar o caminho a seguir. Nos momentos de tensão, quando Londres era bombardeada, foi Churchill quem estava no comando apontando o caminho seguir. Do mesmo modo, Charles de Gaulle assumiu o comando nos momentos de tensão da guerra da Argélia.
Vale ressaltar o ato de grandeza de Churchill quando de Gaulle teve de fugir para Londres sem recursos, armas nem domínio da língua. O estadista inglês reconheceu-o como líder das Forças Francesas Livres que, na época, não passavam de uma força imaginada na cabeça do francês.
Portanto, embora houvesse divergências entre esses dois estadistas, um tinha consciência exatamente do tamanho do outro. Não foi por acaso que Churchill apoiou de Gaulle. Eles estavam de pleno acordo no que era essencial.
Considerações finais
Colombey-les-deux-Églises é um pequeno povoado localizado a leste de Paris, no interior da França. A representação política dessa pequena localidade rural não condizia com a importância da autoridade que lá fora visitar o pequeno cemitério para referenciar a morte de um cidadão francês que fez do ideário de uma França grande a razão do seu viver. A ilustre personalidade, que lá esteve prestando homenagem à memória do falecido, foi o presidente Emmanuel Macron e sua esposa Brigitte Macron.
Macron, visivelmente emocionado, entrou mudo e saiu calado. Preferiu não falar com a imprensa, mas escreveu no seu perfil do Twitter uma homenagem àquele senhor que faleceu há 50 anos, um dia antes de completar 80 anos. Sim, passados mais de meio século de seu falecimento, a memória do general Charles de Gaulle, o homenageado, continua viva no coração dos franceses. Confesso que não sei dizer se a memória dele suplanta a de outro ícone da história da França, o imperador Napoleão Bonaparte. Ambos tiveram o mesmo ideário de uma grande França para os franceses. Seguiram caminhos distintos para obter o mesmo fim. Napoleão nos campos de batalha; Charles de Gaulle, embora tenha como militar vivenciado os horrores das duas grandes guerras, foi um grande líder que jamais se vergou às tentativas dos Estados Unidos em controlar a Europa do pós-guerra. A meu juízo, Napoleão deixou a França menor do que quando a encontrou; Charles de Gaulle entregou uma nação maior do que a recebera.

Coragem e caráter inseridos em uma estratégia de vontade evidenciam atos de ousadia do líder francês e que se materializam em ações da seguinte ordem: retirar a França da OTAN contrariando os Estados Unidos, discordar e criticar ícones da política como Roosevelt e John Kennedy. Para isso, sem dúvida, era necessário algo que o líder francês tinha de sobra: confiança e caráter. É bem verdade que o triunvirato que comandou a Segunda Guerra Mundial tinha uma abrangência que atingia praticamente todo o mundo ocidental, e a liderança de Gaulle, por sua vez, era restrita, pois atingia a França e suas colônias. Entretanto, em termos de estatura, o presidente da França figura certamente em um patamar mais elevado que o de Stalin, ombreando com Churchill e Roosevelt. O francês construiu instituições sólidas que modernizaram a já desenvolvida França. Volto a mencionar uma verdade no relatório elaborado pelo sábio Henry Kissinger para o presidente Nixon sobre o estadista francês: “De Gaulle fez da França uma grande potência”.
Quem conhece Paris sabe que em frente à faculdade de Direito da Universidade de Sorbonne encontra-se um suntuoso edifício. Chama atenção a grande inscrição cravada na parte superior do panteão: “Aos Grandes Homens, a Pátria é grata”. E lá estão os restos mortais de escritores como Voltaire e Victor Hugo, de cientistas como Louis Braille e Pierre e Marie Curie.
Ainda em vida, de Gaulle manifestou o desejo de ser enterrado no cemitério do pequeno povoado de Colombey-les-deux-Églises, ao lado do túmulo de sua última filha, Anne de Gaulle, nascida com a Síndrome de Down e falecida aos 20 anos, em 1948. Desde a morte de Anne, seu pai carregava a sua fotografia aonde fosse. Ser enterrado naquele pequeno cemitério junto da filha demostrava o amor de um pai. Por trás daqueles quase dois metros de altura, por trás de tanta coragem, de tanto caráter, por trás de certa frieza, por trás, enfim, de tanto poder, existia um coração que amava uma filha chamada Anne e uma mãe chamada França. Ninguém merece mais essa frase esculpida no frontão do panteão do que o general Charles de Gaulle: “Aos Grandes Homens, a Pátria é Grata”.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos temas política, energia, literatura e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.
Leia mais sobre Charles de Gaulle