Uma tristeza no silêncio do piano de um hospital

08 março 2023 às 15h38

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Recentemente, trocando uma ideia com uma amiga que está com a intenção de comprar um piano para o filho de 10 anos, ela me disse que teme fazer um gasto em vão, e “o piano ficar em silêncio”, ou seja, o filho perder o entusiasmo pelo instrumento e deixá-lo abandonado. Não opinei. Apenas contei-lhe que um conhecido meu comprou primeiramente uma bateria e depois uma guitarra para o filho de 11 anos. O moleque hoje é um rapagão e não toca nenhum instrumento. Sua empolgação foi meramente uma nuvem passageira.
Esse “silêncio do piano” que minha amiga disse recear me levou a um comentário que a escritora, poeta e jornalista Cássia Fernandes fez numa postagem que realizei em setembro de 2019 sobre um piano na recepção de um hospital de câncer. Ela, que disse ter gostado da história, pontuou que valia a pena desenvolvê-la mais. Este texto é justamente isso. Se acertei no desenvolvimento da história (o que fiz sem lhe acrescentar muitos pontos), é você, altaneiro leitor, que vai dizer.

Num canto da recepção do hospital oncológico num bairro nobre de Belo Horizonte, estava um piano coberto por uma capa de veludo verde. Eu estava lá com um tio, ao qual eu tinha muito amor e respeito, e um primo, que mensalmente levava o pai para tomar uma injeção de um remédio antitumoral. Na verdade, essa ação de levar meu tio ao hospital era realizada também por outros três primos.
Eu estava em Belo Horizonte a passeio. Fui essencialmente para visitar meu tio, que então estava com 93 anos. Muito lúcido. E atento aos acontecimentos políticos. Não era de ler, mas ouvia e assistia aos noticiários. Era o irmão mais velho do meu pai. Infelizmente ambos já foram embora da vida: meu pai com 80 anos, meu tio com 95. Eu disse “infelizmente”, mas tenho conhecimento do que o poeta Cassiano Ricardo versejou: “Desde o instante que se nasce já se começa a morrer”.
Perto do piano, havia uma pata-de-elefante dentro de um grande vaso arredondado e um pouco mais distante uma orquídea branca sobre uma mesa. Só essas plantas vi dentro da recepção. Na parte externa, havia muitas, como ixoras vermelhas e amarelas, crótons de vários tipos e cores, uma moita de russélia florida e uma cica grande, em cujo centro havia um cone longo e dourado, que era seu fruto.
Uma música triste no semblante de muitos pacientes silenciava o instrumento. A tristeza de alguns era maior, talvez motivada pelo estágio avançado do câncer. Um homem de uns quarenta anos simulou tocar o piano, e isso sem retirar-lhe a capa. A seu pedido, uma atendente do hospital registrou a imagem no celular dele (certamente para ser exibida em alguma rede social).
O homem sorriu para a câmera um riso de zíper, um riso roto, daquele que abre e fecha fácil, um riso sem brilho nos olhos. O homem não era paciente, mas acompanhante de uma senhora já de idade, provavelmente sua mãe, que aguardava cabisbaixa sua vez de ser atendida. No momento da foto, uma enfermeira passou empurrando uma cadeira de roda com uma paciente chorando silenciosamente, um grande lenço amarelo cobria-lhe a cabeça para esconder a perda dos cabelos resultante da quimioterapia. E o homem, no entanto, continuou rindo (sem graça) à espera do seu registro fotográfico. Achei patético.
Pensei em perguntar à atendente se o piano era tocado de vez em quando, mas não perguntei. Achei a pergunta inconveniente. Vim embora com essa curiosidade. Entretanto pude ouvir uma música triste no silêncio do piano vinda do semblante apagado de alguns pacientes. Dentro do carro, no retorno à casa do meu tio, ele, que estava no banco da frente do passageiro, virou-se para trás e me disse num tom triste: “Velhice não é mole não, meu filho”. Eu lhe respondi: “Tio, só existe uma maneira de não ficar velho, que é morrer cedo, e isso a maioria das pessoas não quer. Tomara que a vida (que não escuta a súplica de ninguém) me dê o privilégio de chegar à idade do senhor, com a sua lucidez e se movimentando”.
Meu tio morreu em 2021. Não tive como ir a Belo Horizonte acompanhar o seu velório e sepultamento. Mas esse impedimento não me incomoda, pois, quando estava vivo, eu o visitei algumas vezes e assim conversamos e rimos muito. E ainda nos falávamos por telefone com frequência.
Sinésio Dioliveira é jornalista