Eis-me de volta falando de arribaçã: um dos muitos nomes populares da pombinha Zenaida auriculata. Em minha última crônica, falei dessa ave, que está presente em todo o Brasil, mas sem me demorar no assunto. Eu poderia ir ao Google e pesquisar o significado de tal nome para assim impressionar a quem me lê com uma imagem de erudito em conhecimento de aves. Me recusei, visto que sou o primeiro leitor deste texto e sei que eu não saco muita coisa de ornitologia. Manjo bem pouco do assunto.

Pombas arribaçãs | Foto: Sinésio Dioliveira

Minha paixão pelos passarinhos, aos quais chamo de poetinhas da natureza, não tem nada ver com registrar o maior número deles e, sobretudo, saber o nome científico de cada um. Gosto deles por eles e pela metáfora de liberdade que representam. O cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu, um dos meus prediletos no emprego de belas metáforas, sempre mostra passarinhos em seus filmes. Foi minha afinidade com os passarinhos que me fez socorrer um filhote de avoante que caiu do ninho. Encontrei-o por volta das 14h do último domingo, na Praça Khalil Gibran, quando fui pegar meu carro para ir embora.

Loló: bico quebrado por um papagaio | Foto: Sinésio Dioliveira

O piado de dor do passarinho, por estar fora do seu ninho e longe dos pais, me trouxe uma frase do escritor, poeta e pintor Khalil Gibran: “As grandes dores são mudas”. Para mim, a dor da avezinha era grande, e eu não queria que “um pedaço do céu ficasse cego” com a morte do filhote, como cantou o poeta Gabriel Nascente (que tem bagagem literária para integrar o panteão da ABL), se referindo a “toda vez que morre um pássaro”. Peguei-o e levei para casa. Como as penas de suas asas ainda estavam em formação, coloquei a pequenina pomba-amargosinha dentro de um vaso de vidro no qual havia um terrário até alguns meses atrás. O excesso de água pôs fim à vida das plantinhas que o habitavam — cactos e suculentas —, devido zelo (danoso) da diarista que vai semanalmente à minha choupana tirar a poeira. Ela agora não rega mais minhas plantas. Acertamos isso.   

Minha intenção era comprar uma gaiola e deixar o filhote nela até que pudesse ganhar o céu. De segunda para terça-feira fez um friozinho, então coloquei um pedaço de flanela dentro do vaso para aquecer a pequena juriti-carregadeira. Na manhã da terça, antes de ir para o trabalho, dei-lhe comida de modo impositivo como eu vinha fazendo desde que a encontrei: enfiando-lhe goela abaixo quirela de arroz e milho e sorgo. Tudo isso umedecido. Na hora do almoço, fui em casa e a alimentei novamente. Dei água.

Gabriel Nascente e seu periquito Loló | Foto: Sinésio Dioliveira

À tarde já não a vi mais. Procurei-a debaixo dos móveis.  Pensei que a encontraria quando emitisse algum piado de fome. Imitei piado de filhote de sua espécie à espera de sua resposta. Tudo sem êxito. Na quarta-feira pela manhã, dei outra geral, mas nada de encontrá-la. À noite em minha casa, veio a verdade quando fui tirar meus sapatos. Senti um mau cheiro. Eu sabia que não era chulé, mas ainda assim cheirei uma das minhas meias. Foi aí que me veio o que eu vinha temendo. Então vi o filhotinho morto atrás da porta, justamente onde não o procurei.

Ao contrário de Loló, periquito-de-encontro-amarelo do poeta Gabriel Nascente, que pôde viver 19 anos, a pequena pairari teve poucos dias de vida. Dei à avezinha o mesmo destino dado por Gabriel a Loló: um sepultamento no Bosque dos Buritis na manhã da quinta-feira. Não tive trabalho em enterrar aquele serzinho que nem cem gramas tinha.

Loló, que até ganhou livro após sua morte — “O Príncipe de Túnica Verde” —, era tratado como filho. Um filho alado. Até crônica periquitinho ganhou quando voou para fora da vida: “Dormes, ave imortal”. Loló era, digamos assim, um passarinho criado por vó. Era ciumento: fazia um escândalo enorme quando eu ia à casa do Gabié jogar conversa de poesia fora. Queria a atenção do dono só para ele.  Loló mereceu virar um livro de poesia. E para encerrar esta crônica, eis alguns versos da obra:

“John Keats quebrou os tetos da alma

numa ode ao rouxinol

e chorou num verso de lágrima inglesa.

Neruda abriu a terra

numa cerimônia de cova

para seu pássaro sofrê.¹

E eu, profeta da cinza,

vi a morte murchando as perninhas guenzas do Loló.

Dois míseros palitos de fósforo empalamados.”

Sinésio Dioliveira é jornalista.

Nota

¹ O pássaro mencionado pelo poeta chileno, também conhecido por corrupião, foi um presente do casal Amália Hermano (botânica e escritora)-Maximiano da Matta Teixeira (desembargador) quando Pablo Neruda esteve em Goiânia, em fevereiro 1954, participando do I Congresso Nacional de Intelectuais. O pássaro morreu na viagem de retorno ao Chile.