Soldadinhos e um celular em troca da amizade de duas crianças
12 dezembro 2023 às 17h02
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Há quatro crianças no restaurante em que almoço durante a semana, exceto nos sábados e domingos, que é quando pego minha tralha fotográfica e rumo para algum lugar bucólico, longe das casas, as quais, conforme disse Fernando Pessoa pela boca de Alberto Caeiro, “escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”. Assim com minha máquina, ponho-me a colher plantas e bichos, principalmente passarinhos, que são o meu fraco (no sentido de me deixar forte na contemplação deles). Nessas andanças, longe das casas, volto rico de tanto ver e sentir.
Amizade de criança é algo precioso, é algo puro. Criança não é capaz de nos sorrir com um punhal atrás dos dentes. Li em algum livro (acho que em “Leitura Materialista do Evangelho de Marcos”, do filósofo português Fernando Belo) que Jesus, ao contrário do que muitos são levados a acreditar, não fez nenhum abracadabra com cinco pães e dois peixes e os multiplicou a ponto de alimentar quase cinco mil pessoas e ainda fazer sobrar 12 cestos de pedaços de pão e peixe. O que Ele fez, conforme li, foi um discurso comovente no sentido de sensibilizar as pessoas a serem solidárias umas com outras. Disso resultou que um menino deu início à solidariedade entregando ao apóstolo João cinco pães e dois peixes. O gesto fraternal do menino foi imitado por muitos da multidão. Daí ter sobrado tanto alimento.
Vejo mais espiritualidade nessa partilha, que foi iniciada por uma criança. Inclusive cabe aqui lembrar o que disse Jesus, certa vez, aos apóstolos que queriam impedir o acesso dos pequeninos a Ele: “Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas”.
A inocência das crianças às vezes até gera cenas hilárias. Manoel de Barros — o poeta passarinho — colhia versos nas frases dos filhos quando crianças. Uma vez num clube na cidade de Britânia, um menino de uns 4 anos veio correndo do banheiro e chorando. Na resposta à mãe sobre o que havia acontecido, disse que tinha um cocô pulando no banheiro: era um sapo. O susto de muitos, principalmente dos pais, virou riso de todos.
As crianças do restaurante são três meninas e um menino; duas delas — o João Lucas e a Catarina, respectivamente com 7 e 5 anos — costumam ir à minha mesa. Aquele com maior frequência. Demorei a conquistar a amizade da Catarina, que é neta da dona Lourdes: a proprietária do restaurante, cujo coração bondoso permite que funcionárias sem ter com quem deixar filhos ou netos os levem para o trabalho. Já vi muitas vezes a dona Lourdes ajudando algumas crianças na realização de tarefas escolares. Ela foi professora primária por muitos anos. Certa vez, ao ver a Catarina recolhendo alguns insetos nas folhas de uma pata-de-vaca na frente do restaurante e colocando-os num pequeno vidro, isso acompanhada de uma moça atenciosa e simpática que cuida dela, vi a oportunidade de me aproximar.
Falei à Catarina que os insetos se chamam soldadinhos, até lhe mostrei um vídeo que tenho em meu celular sobre tais bichinhos. A partir de então, deixei de ser um estranho para ela. Outra coisa me ajudou a ganhar sua amizade: um avião de papel que fiz para ela e lhe ensinando o passo a passo. Dias atrás, chegou em minha mesa dizendo “eu sei fazer avião”. Eu disse “quero ver”, ela buscou uma folha de papel ofício e provou que aprendera.
Já o João Lucas, cuja avó materna é funcionária do restaurante, praticamente senta na minha mesa sempre que estou almoçando por lá. Sua presença em minha mesa não é por mim diretamente, mas indiretamente sim, pois é meu o celular que ele usa enquanto pego rango. É uma criança com uma certa deficiência, não tem dicção perfeita igual à da Catarina, que inclusive saber ler; João sabe apenas reconhecer as letras. A princípio, ele e eu nos chamávamos de Betube. Nome que criei por vê-lo assistindo desenhos no Youtube no celular da avó. Agora nos chamamos pelo nome próprio. Sua avó me contou que, quando bebê, ele caiu no chão afetando sua cabeça. Ficou nove dias na UTI.
João não fala meu nome de uma vez, fala de um jeito assilabado, mas, ao me contar certas coisas, fala muito rápido, e eu acabo não o compreendendo em muitas coisas. E ele, que já memorizou a senha do meu celular, não se importa, pois sua atenção maior é para os desenhos que assiste. Porém sempre o interrompo, perguntando-lhe se conhece bicho tal. E ao seu “não”, peço que vá ao Youtube e procure. Aí vou falando letra por letra, e ele acaba chegando ao bicho. Agora já sabe que os bichos que puxam o carrinho do Papai Noel são as renas. Agora neste período de férias, não terei o João Lucas em minha mesa.
Sinésio Dioliveira é jornalista