Ladino que é, você, altaneiro leitor, também alfabetizado na leitura das entrelinhas, certamente já sacou que busquei o título desta crônica em Gabriel García Márquez, mais precisamente em seu romance “O Amor Nos Tempos do Cólera” (traduzido, por sinal, por Antonio Callado). Obra na qual podemos encontrar um tipo de triângulo amoroso, só que bem insosso e bem distante da lascívia do triângulo abordado nos romances “Madame Bovary” e “O Primo Basílio”, de Gustave Flaubert e Eça de Queiroz, respectivamente. Flaubert piou fino na mão da justiça francesa por causa de seu romance: teve de assumir que Ema Bovary era ele.

Flaubert: “Madame Bovary sou eu” | Foto: Reprodução

Não citei “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, pois Bentinho, o narrador casmurro da obra, não menciona adultério ao pé da letra. Dá a entender. Enfim seu relato sobre a esposa não é confiável. O que é intencional por parte do Bruxo do Cosme Velho e assim deixar no ar um mistério a dar piparotes nos neurônios do leitor com os fatos ditos nas entrelinhas. Esses piparotes levaram Millôr Fernandes a dizer em 2009, em texto publicado na revista “Veja”, que Escobar transou com Capitu e que, com seu texto, havia tirado Bentinho do “armário”. Mas antes de Millôr, isso na década de 90, uma aluna minha de literatura do segundo grau havia me perguntado se Bentinho era gay.  A aluna abriu seu livro e me mostrou as frases sublinhadas (também mencionadas por Millôr) que a fez a dizer tal coisa: “Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. (…) Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas”.

Bentinho, Escobar (no centro) e Capitu | Foto: Reprodução

Fui um pouco além do uso do título: peguei emprestado o nome de dois personagens da obra — Fermina Daza e Florentino Ariza —, e mais adiante o leitor saberá o porquê. Florentino, coitado, era um embriagado do amor romântico, daquele a ponto de carregar água no jacá pela amada (mas isso, vale observar, apenas no ombro da alma). Ele esperou por Fermina mais de 50 anos. Era amor pra mais de metro. Na adolescência, ele andou enviando algumas cartas açucaradas de amor para ela, que, ao conhecê-lo pessoalmente, desencantou-se com o que a realidade lhe mostrara sobre o jovem das cartas e o diante de seus olhos. Acabou, porém, se casando com um médico.

A realidade é crua, e isso faz com que ela destrua muitos sonhos de amor vividos em castelos com um príncipe e uma princesa que se casam, têm filhos, cachorro, gato, papagaio e são felizes para sempre. A realidade vê abóbora como abóbora e não como carruagem; a subjetividade, útero fértil do romantismo, sim. O Florentino das cartas era uma linda carruagem conduzida por Pégaso, Incitatus e Bucéfalo.

Os ferimentos resultantes da espada oculta sob a plumagem edênica das asas do amor só atingem aqueles que realmente buscam o amor com intensidade e que, ao perdê-lo, ficam sem rumo, açoitados pela dor da perda.  Coisa que passa, se a pessoa ferida souber que os amores passam e que o coração continua. Florentino não fez a fila andar. Aos 76 anos foi que pôde reencontrar Fermina já viúva e com 71 anos.

Fermina e Florentino (meus personagens) não chegaram a viver um amor assim. Longe disso. Foi ela, uma ex-colega de trabalho, que me contou sobre o affair virtual dos dois. O que viveram, segundo ela, nem se pode chamar de amor. Cada um buscou, mesmo que virtualmente, amar o outro julgando haver neste algo real ou suposto de si, conforme o meu vate querido Fernando Pessoa disse: “Ninguém a outro ama, senão que ama / O que de si há nele, ou é suposto”. Um papo romântico era mútuo entre eles, mas tudo pura exercitação verbal.

Fermina Daza e Florentino Ariza: personagens de García Márquez | Foto: Reprodução

Virtualmente tudo ia muito bem, principalmente as fotos de si que trocavam, mas isso após as imagens passarem por uma sessão de filtros. A pele de ambos começou a pedir algo mais real, mais carnal, pois os dois, cada vez mais, se insinuavam, e isso com envio de imagens bem sensuais. Marcaram de se encontrar no Jardim Zoológico. Coincidentemente isso aconteceu em frente ao cercado de um búfalo, que não foi como o bú(falo) do conto homônimo de Clarice Lispector.

Acabaram não se encontrando. Mas não porque não tenham ido conforme o dia e horário marcados. Na verdade, não se conheceram. Entre os dois aconteceu reciprocamente a decepção de Fermina com Florentino do romance de Gabriel García Márquez. Ambos se sentaram no mesmo banco. Ficaram por ali quase uma hora olhando-se mutuamente de rabo de olho e a pensar: “será que é ela?; será que é ele?”. Foram embora e não trocaram mais mensagens. O amorleceu…

Sinésio Dioliveira é jornalista.