José Mauro Vasconcelos, o escritor que amava o Rio Araguaia, e o cacique Raul

14 junho 2023 às 09h31

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Matar não quer dizer a gente pegar o revólver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu.
“A maior força de uma cidade é ter muitos cidadãos instruídos.” Esta frase é do monge e teólogo alemão Martinho Lutero (1483-1546). Ele é o religioso que mostrou a balbúrdia em que vivia a Igreja Católica de seu tempo, a qual oferecia, de modo impositivo, Deus às pessoas de maneira não ortodoxa. Ao contrário de hoje (em que um famoso bispo bilionário deu até ensinamentos a seu séquito de pastores em como xavecar as ovelhas e tosquiá-las na manha: “ou dá ou desce”), naquela época não se podia descer caso não quisesse dar.

Quem não aceitasse Deus goela abaixo pagava com a vida. Um exemplo disso é o italiano Giordano Bruno — teólogo, filósofo e poeta —, que teve um final de vida doloroso: morreu queimado em 17 de fevereiro de 1600, aos 52 anos. Pena que lhe imposta pela Santa Inquisição sob a acusação de herege. Isso porque ele apontou a necessidade de se reescrever sobre Deus sob a ponderação da existência de outros mundos. Eu não precisaria ter ido longe para falar da importância de uma cidade em ter muitas pessoas instruídas. Agora deixa. Só sei que a falta de instrução, que pode ser denominada também de sabedoria, tem feito muita gente comer capim e até zurrar. Diz a Bíblia que o rei Nabucodonosor comeu capim com os bois por alguns anos, mas recobrou o entendimento e deixou de pastar.
Estive em Aruanã neste final de semana e vi muitos visitantes pastando por lá por falta de entendimento ambiental. A cidade estava lotada. O que se constata é que a maioria dos turistas que entope a cidade na temporada de férias (o que é fundamental à sobrevivência dos comerciantes) está obrando e andando para o Araguaia. O barato dessa turba passa longe de um contato respeitoso para com a natureza. O rio não é o essencial, mas a muvuca que acontece na cidade. O babado é chapar geral e curtir a tal música sertaneja, que de sertão nada tem. Em cada bar (muitos inclusive bem próximos uns dos outros), uma música diferente, um verdadeiro furdunço de deixar até o capiroto enfurecido.

Visitei o cacique Raul em sua aldeia na cidade à beira do Rio Araguaia. Meu primeiro contato com ele aconteceu especificamente dia 24 de outubro 2016, quando levei-lhe de presente o livro lançado pela Editora Kelps “Viagem ao Araguaia”, de Couto de Magalhães, cuja primeira edição aconteceu em 1863. Em nossa conversa sobre Couto Magalhães, que foi governador de Goiás e inaugurou a embarcação a vapor no Rio Araguaia, Raul me contou que o escritor José Mauro de Vasconcelos sempre visitava Aruanã e que seu primeiro contato com o escritor se deu quando o cacique ainda era menino e andava pelado pela aldeia. Sua presença na cidade proporcionava muita alegria à meninada quando vinha de São Paulo, pois sempre trazia presentes. Em 1982, foi a sua última visita, dois anos depois morreu.

Vasculhando a história do escritor, descobri que ele veio em 1943 para a região do Araguaia com os irmãos Villas-Bôas na Expedição Roncador-Xingu, que era a principal frente da Marcha para o Oeste, programa criado no governo de Getúlio Vargas. “Banana Brava”, publicado em 1942, foi o livro de estreia de José Mauro de Vasconcelos, cuja notoriedade literária se deu mesmo em 1968 quando publicou o famoso “Meu Pé de Laranja Lima”, que até foi adaptado para a televisão e para o cinema. Antes desta obra, publicou outras; “Rosinha, Minha Canoa” é uma delas.
Raul, em nossa conversa de sábado, 10, me disse que José Mauro de Vasconcelos era uma pessoa diferente. Segundo o cacique, o escritor muitas vezes ficava parado na beira do rio contemplando por um bom tempo a beleza das águas, dos bichos. O chefe karajá só foi entender que o trabalho de JMV era escrever depois de muitos anos. Certamente foi, nos percursos do escritor pelo Araguaia, percorrendo de canoa centenas de quilômetros sozinho, parando em alguns lugares e fazendo anotações literárias num caderno, que ele pôde observar bem um jaburu (ave também conhecida como tuiuiú) e realizar uma descrição excelente sobre o bicho:
“Jaburu, na praia branca do rio, conversava uma eternidade de silêncio, caminhando de lá para cá e, voltando as pernas longas, retornava ao ponto de partida. Bicho tão feio e desengonçado ao caminhar, no voo não havia ninguém que lhe tivesse a elegância” (“Rosinha, Minha Canoa”).
Raul estranhou quando eu lhe disse que aprendi a “matar” pessoas com José Mauro de Vasconcelos. Ele franziu a testa como se estivesse pensando: “Que conversa esquisita essa deste jornalista”. Ao explicar-lhe a maneira, que está no livro “Meu Pé de Laranja Lima”, ele sorriu: “Matar não quer dizer a gente pegar o revólver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu”.
Sinésio Dioliveira é jornalista.