Horário eleitoral virou cabaré de cego
03 setembro 2024 às 21h09
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Não tive como não recorrer a outro título para esta crônica (insossa como chupar laranja após escovar os dentes). Se você, altaneiro leitor, concluir a leitura deste texto, certamente há de concordar comigo. Em conversa com minha amiga Ângela Lobo – poeta de meia-pataca – sobre o título, ela me sugeriu o acréscimo de mais pimenta. Gosto do sarcasmo de Ângela, minha mais antiga amiga. Nem ouso mencionar o que sugestionou. É coisa de fazer o Xandão “feXar” a cara.
O que Ângela me disse é de deixar enrubescido até o poeta barroco Gregório de Matos (1636 – 1696), cujos versos satíricos e eróticos geraram-lhe o apelido “Boca do Inferno”. O chicote satírico do bardo baiano não poupou nem a Sé da Bahia, igreja construída em 1553: “A nossa Sé da Bahia, / com ser um mapa de festas, / é presépio de bestas / se não for estrebaria: / várias bestas cada dia / vemos, que o sino congrega…” Agora os bestas são mais numerosos e têm enriquecido muitos líderes religiosos especializados em bater carteira no 171.
Naquela época a população brasileira chegava a quase 300 mil pessoas. Antes só a Igreja Católica se beneficiava da recomendação do profeta Malaquias. Segundo ele, no capítulo 3, versículo 10, o Senhor dos Exércitos ordena que se leve “todos os dízimos à casa do tesouro para que haja mantimento na minha casa”. Conforme o profeta, após os dízimos (que são usados para compra de mansões, aviões, carrões, fazendas…), pode-se buscar o poder do Senhor dos Exércitos e então uma bênção tal será derramada sem que haja um lugar suficiente para recolhê-la.
Sobre o título, a sua justificativa, a meu ver (estrábico), está em fatos atuais e passados. Sobre aqueles, um exemplo está no baixo nível que tem sido a disputa eleitoral para prefeito na capital paulista. Leia-se: o bafafá recente no debate da TV Gazeta entre o candidato tucano José Luiz Datena e o excêntrico Pablo Marçal, o qual fez cadeirantes andar (mas ninguém filmou, segundo ele) e está na iminência de ressuscitar mortos.
Em vídeo que corre por aí, o estrambótico Marçal contou que já orou (sem êxito) para dois defuntos, mas que ainda acredita que vai fazer igual a Jesus, que ressuscitou três pessoas, inclusive Lázaro que já estava sepultado há quatro dias. Marçal passa a impressão de que vai colocar Jesus no chinelo na prática da ressureição. O guru Marçal certamente não conhece um ditado popular português que diz que “Esperteza, quando é muita, vira bicho e come o dono”. Para ele, Ayrton Senna foi um piloto sem nada de extraordinário: “O Senna não pilotava helicóptero igual eu. (…) O Senna não era bilionário, o Senna não escreveu 45 livros”. Que presunção tão tola. Antoine de Saint-Exupéry escreveu oito, entre os quais está o mais famoso de todos: “O Pequeno Príncipe”. O filósofo e escritor francês Michel de Montaigne, do século XVI, escreveu apenas “Ensaios”.
Essa história de ressuscitar mortos gerou até meme: um senhorzinho já octagenário diz à esposa que vai levar seu pênis morto para o esdrúxulo Marçal e ouve dela que o poder de ressureição do profeta goiano não chega àquilo que está morto há muitos anos. Esse cabaré de cego não é de agora; por causa dele, nas eleições de 1988 no Rio de Janeiro, um chimpanzé famoso do zoológico da cidade, cujo nome era Tião, foi lançado por humoristas do Casseta e Planeta a candidato a prefeito do Rio de Janeiro. Teve 400 mil votos. Ficou em terceiro lugar. Na morte de Tião em 1996, aos 33 anos, foi decretado luto oficial no Rio. Tião tinha hábito de jogar suas fezes nos visitantes do zoológico. Isso também acontece hoje, não, óbvio, ao pé da letra. Os candidatos inclusive usam o ventilador das redes sociais para disseminar a titica com maior amplitude.
Cabe citar também nesse cabaré de cego, o pleito de deputado federal por São Paulo buscado em 2022 por um tal Clóvis Basílio dos Santos, volumosamente conhecido como Kid Bengala, cuja fama fálica põe jumento no bolso. Ao contrário do que faz com as atrizes pornôs, com as urnas a sua performance não funcionou. Foi sua quarta falha consecutiva. Suas peças eram trocadilhescamente obscenas: “Como o Ricardo, como a Flávia, como a Maria, como a Joice, enfim, eu, como todos os brasileiros e brasileiras, estou de saco cheio de tantas sacanagens na política”.
No vácuo da sacanagem, em Goiânia, também buscou, sem êxito, uma cadeira na Câmara Federal, no mesmo ano, a senhora Maria Nunes Perdigão, que, motivada pela novela global “Gabriela” (inspirada no romance “Gabriel, Cravo e Canela”, de Jorge Amado), adotou o nome Maria Machadão. Dona da Estância MM, ela tinha 69 no final do seu número eleitoral e dizia que, com ela, o eleitor iria votar “gostoso”.
Li numa matéria que seis candidatos a vereador de capitais nordestinas, nas eleições deste ano, têm “piroca” em seus registros de candidatura. Não ficou esclarecido se o termo está nos nomes dos possíveis edis por significar “calvo, careca” ou “pênis”, que é o significado mais conhecido da palavra. Macunaímico que é povo brasileiro, lógico que o termo escolhido pelos candidatos não está ligado a falta de cabelo…
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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