Esta crônica não tem nenhum propósito de se demorar no uso da tinta da melancolia para falar da morte do escritor e folclorista Bariani Ortêncio.

Não resta a menor dúvida de que sua morte significa algo triste. Porém há mais motivos de alegria para se falar sobre ele. Faz-se necessário reconhecer que Bariani foi um privilegiado: pôde viver cem anos, os quais não transcorreram em brancas nuvens. Pelo contrário.

Ele não fez parte da rotina oca vivida por muitas pessoas, a qual é citada na excelsa poesia pessoana: “Triste de quem é feliz! / Vive porque a vida dura”. Não tive como não recorrer a Pessoa novamente. Coisa que fiz na crônica anterior. Vou dar uma trégua ao bardo e a você essencialmente, altaneiro leitor. Juro.

O vate português, no mesmo poema, esbofeteia outro tipo de tristeza: “Triste de quem vive em casa / Contente com seu lar”, / Sem que um sonho, no erguer de asa, / Faça até mais rubra a brasa / Da lareira abandonar”. Bariani foi uma pessoa contente com seu lar. E lá realmente é um cantinho ótimo de se estar contente, principalmente em eventos festivos, mas ele sonhou, e seu sonho saiu do chão. Ele fez o que Raul Seixas cantou em “Ouro de Tolo”: não se sentou “no trono de um apartamento / com a boca escancarada cheia de dentes / esperando a morte chegar”.

Em seu livro “Minhas Reminiscências”, Bariani, que sabia a receita de muitas iguarias (e até tem livros sobre o assunto), dá a receita sobre a maneira ideal de se ver o tempo passar bem, que é se ocupar e assim não ter uma vida oca. Ocupação não lhe faltou. Pôde, enfim, tocar sua vida com quantidade e qualidade. Dentro do tempo que existe para cada coisa debaixo do céu: chorou, riu; espalhou pedras, juntou-as; rasgou, coseu; plantou, colheu… Enfim, como consta em Eclesiastes, teve o seu tempo de nascer e seu tempo de morrer. No seu século de vida, além de muitas atividades empresariais, pôde também escrever mais de cinquenta livros. E livros, como bem o sabemos, a vida não silencia; ela apenas silencia seus autores.

No respectivo livro de Bariani, há centenas de relatos sobre fatos mais variados, como, por exemplo, sua chegada a Goiânia aos 15 anos vindo de Igarapava, São Paulo. “Cheguei aqui (Goiânia) na última hora do dia do ano de 1938”, diz. Num desses relatos, conta que lançou “Sertão Sem Fim”, seu primeiro livro, na famosa Livraria Teixeira, em São Paulo, e que no evento conheceu José Mauro de Vasconcelos. Pesquisei sobre tal livraria: foi fundada em 1876 e era também editora. E assim, conforme matéria da “Folha de S. Paulo” de 31/5/2000, “lançou ‘Poesias’, de 1888, primeiro livro de Olavo Bilac; a primeira edição de ‘A Carne’, de Júlio Ribeiro, no mesmo ano, e ‘Espumas Flutuantes’, de Castro Alves, em 1889”. Tinha frequentadores ilustres, como dom Pedro II; o presidente da República Washington Luís; o jurista, político e escritor Rui Barbosa; os escritores Jorge Amado, Erico Verissimo, José Mauro de Vasconcelos, Mário Lago, Lêdo Ivo, Lygia Fagundes Telles, entre outros. Essa livraria é a mais longeva, fechou em 2020, mas felizmente foi reaberta. Ao longo desse tempo, teve vários donos.

Bariani Ortêncio e Sinésio Dioliveira | Foto: Diego Moura

José Mauro de Vasconcelos também teve o seu famoso “Meu Pé de Laranja” lançado na respectiva livraria. Ele e Bariani, desde o encontro mencionado por este, então se tornaram amigos. “Todas as vezes em que ele vinha a Goiânia para ir ao (rio) Araguaia, vinha aqui pra casa, na Rua 82”, conta Bariani, que era quem levava JMV à Casas Pernambucanas, em Campinas, para comprar tecidos para levar para os índios de Aruanã. Bariani conta que o poeta Brasigóis Felício, em adolescência poética, gostava de “derrubar madeira de lei”, ou seja, só criticar escritores famosos. E galhos do pé de laranja lima foram usados para açoitar o escritor. Inclusive colhi este depoimento do Bariani para um documentário que pretendo fazer sobre as vindas de JMV a Aruanã, cidade goiana à beira do Rio Araguaia.

José Mauro de Vasconcelos com crianças indígenas | Foto: Reprodução

A pedido de JMV que estava na casa de Bariani, este providenciou um encontro do escritor com o poeta e crítico Brasigóis Felício, que foi lá. As arestas foram aparadas, e Felício até fez artigo enaltecendo JMV. Houve, porém, um relato triste numa volta de Bariani à livraria: não viu o amigo por lá e foi visitá-lo. Conta que se arrependeu ao ver amigo que pesava quase 100 quilos pesando aproximadamente 30 quilos; apenas seus olhos mexiam. Morreu aos 64 anos. 

Enfim, viva Bariani por ter passado pela vida de modo intenso, numa mistura de quantidade e qualidade.

Sinésio Dioliveira é jornalista