Enfim consegui o meu primeiro registro de um sabiá-barranco. Em minha gaiola virtual, até sábado, 29, só havia três espécies: o sabiá-laranjeira, o sabiá-poca e o sabiá-do-campo. O último deste que fotografei estava acompanhado de um filhote de chupim: ave que, malandramente, bota seus ovos em ninhos alheios e some no mapa, deixando a casais de outras espécies a tarefa de cuidar de filhos que biologicamente não são seus. Já registrei também um sabiá-poca agindo como pai adotivo. O chupim não é a única ave no rol das parasitas. Não vou citar as demais, pois esta crônica tem como assunto a estátua de Anhanguera, instalada bem no centro do cruzamento das avenidas Goiás e Anhanguera.

Um grupo de jovens rebeldes trocava ideias incendiárias dentro do Bosque dos Buritis, e, no cerne da conversa, estava a estátua do Anhanguera, que eles diziam que já deveria ter sido alvo da fogueira da atual diabólica inquisição. Ouvi isso enquanto fotografava o sabiá-barranco. O papo dos adolescentes me trouxe uma metáfora brilhante de Goethe: “A juventude é a embriaguez sem vinho”. Essa embriaguez matou o mitológico jovem Ícaro, que não deu ouvidos ao conselho de Dédalo, seu pai: de não voar muito alto, mais próximo ao sol, e assim derreter a cera que prendia as penas de suas asas. Ícaro não foi presa de Minotauro, mas não escapou da queda do céu. No papo da moçada, encontrei as cinzas de um episódio antigo de fogueira.

Anhanguera: bandeirante | Foto: Sinésio Dioliveira

Embriagadas de um fanatismo enquanto justiceiras da história, algumas pessoas puseram fogo na estátua do bandeirante paulista Manuel de Borba Gato numa praça de São Paulo em 2021. Esse tipo de comportamento, de certa forma, tem a ver com as ações sórdidas da Santa Inquisição, que matava pessoas queimadas, tidas como hereges, como ato punitivo de seus desvios das normas de conduta estabelecidas pela Igreja Católica.

Esse quixotismo de protesto é tolo, pois ignora o tempo em que essas ações dos bandeirantes aconteceram. Esses homens chegaram à América em decorrência das grandes navegações marítimas, ocorridas nos séculos XV e XVI, em busca de novas rotas comerciais e locais de ação colonial. Isso resultou em muitos conflitos entre os países europeus. Portugal e Espanha realizaram as primeiras disputas nesse sentido, que envolviam muito derramamento de sangue.

O Brasil foi concebido nesse útero de violência. Violência esta protagonizada pelos bandeirantes. Ao se deparar com um montão de “pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”, o escrivão Pero Vaz de Caminha fez recomendação em sua carta ao rei Dom Manuel I: “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.”

Anhanguera: motivo de discórdia entre jovens | Foto: Sinésio Dioliveira

Afinal, como o próprio Caminha relata, o objetivo essencial da expedição de Pedro Álvares de Cabral ainda não tinha sido encontrado: “Até agora, não pudemos saber se haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro…” Em nosso sangue, há vestígios do sangue de Cabral, Borba Gato, Bartolomeu Bueno, entre outros (como também dos índios e negros massacrados por aqueles). Esses personagens agiram conforme era procedimento de então.

A história tem ensinamentos valiosos para a leitura do passado. Ao refletir sobre os feitos das gerações anteriores, as posteriores podem assim evitar a repetição dos erros das antecessoras. No entanto, isso tem tido um efeito prático muito insignificante, pois existem comportamentos seculares que ainda perduram, como xenofobia, racismo, preconceito sexual, escravidão moderna. Desde a descoberta da escrita, feito dos sumérios 4 mil a.C., até o momento existe ainda uma certa fogueira inquisicional. Foi ontem (1964) que o presidente dos Estados Unidos Lyndon Johnson criou a Lei dos Direitos Civis. Mas, mesmo assim, um tiro tirou a vida do líder negro Martin Luther King. Ainda não se fez luz totalmente na face do abismo… Temos ainda muito a nos lapidarmos enquanto pessoa. Ainda há muitas pessoas, que por serem brancas, se achando no direito de chamar negros de macacos.

Voltando ao Diabo Velho, não creio que seja destruindo estátuas e realizando outros descalabros afins que se vai consertar a história. É a nossa ignorância que precisa ser destruída. E urgente. Nessa toada abominável de destruição inquisitiva, teremos também de queimar a Bíblia, pois nela há muitos reis abençoados por Deus, que realizavam a expansão de seus reinados por meio da violência e escravização. Em Samuel 8:2, por exemplo, podemos constatar que Davi agia como os bandeirantes, ou seja, estes repetiam as ações de expansionismo daquele que tomou Bate-seba de seu general Urias e para este armou uma cilada mortal: “Davi derrotou também os moabitas. Ele os fez deitar-se no chão e mandou que os medissem com uma corda; os moabitas que ficavam dentro das duas primeiras medidas da corda eram mortos, mas os que ficavam dentro da terceira eram poupados. Assim, os moabitas ficaram sujeitos a Davi, pagando-lhe impostos.” Salomão, filho de Davi com Bate-seba, seguiu os rastros do pai.

Deixemos o Anhanguera quieto, pois ele é um diabo já bem velho. Vamos procurar algo mais edificante para fazer de Goiânia.