As flores não vão até as borboletas
07 janeiro 2025 às 16h30
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Sou um consumidor contumaz da poesia de Manoel de Barros. Estou com obesidade poética manuelina. Meus batimentos cardíacos estão no compasso. Aprendi com ele a aprimorar o aparelhamento dos meus olhos na observação das coisas. Aprendi também a apanhar desperdícios em cesta de colher frutas. Isso tem me possibilitado muitos assuntos para minhas escrevinhações, as quais muitas vezes vêm acontecendo sem que os meus ombros suportem o peso do assunto. Fato que tem me obrigado a ir na contramão do que recomendou o poeta romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.) numa carta encaminhada a uma família de amigos — os Pisões: “pesai no espírito longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que eles não podem suportar”.
Horácio especificamente fez tal recomendação àqueles envolvidos no ofício poético. Eu, entretanto, (metendo o bedelho) entendo que essa recomendação pode ser estendida a tudo que envolva o mundo da escrita (e até da oralidade). As palavras ocas, sem boca, decorrem dessa falta de força nos ombros… E em se tratando de crônica, como bem sabe você, altaneiro leitor, faz-se necessário haver algumas pitadas poéticas para adoçar o texto. Do contrário, a crônica não pode ser tida como tal.
Nessa minha reparação das coisas, às vezes costumo colher alguma metáfora. É a minha figura de linguagem predileta. As demais também admiro, cada uma, portanto, dentro do seu contexto enquanto ferramenta estética. A metáfora, metaforicamente falando, possui o poder maravilhoso de tirar a roupa nominal de um objeto para vesti-la em outro e a este tornar mais belo que o objeto original. Li não sei onde que “a metáfora resulta de um olhar privilegiado”. Não sei. Enfim, a respectiva figura está por aí, “em todas coisas”, como disse Goethe. Os olhos para encontrá-la é que são elas. Para isso, ouvi de um poeta, é preciso ser alfabetizado em borboletas.
Observando as borboletas nas flores, disso extraí uma metáfora (se de valor estético não sei): as flores não vão até as borboletas, como também às abelhas, aos beija-flores. Temos de caminhar até a felicidade, buscá-la naquilo onde supomos que ela esteja, como fazem os bichos nectarívoros: se dirigindo às flores. E isso tem de ser jogo rápido, pois a vida voa, é um sopro. E a gente, afinal, já começa a morrer a partir do momento em que se nasce, conforme disse o poeta Cassiano Ricardo em seu poema doído “O Relógio”. Nos quatro versos iniciais, o poeta dá um toque de alerta existencial: “Diante de coisa tão doída / conservemo-nos serenos. / Cada instante de vida / nunca é mais, é sempre menos”.
A morte chegará a todos de qualquer modo, até não fazendo nada no sentido de “cumprir a vida (…) e ir tocando em frente”. No entretempo entre a nossa chegada e a nossa partida, deve ocorrer a nossa movimentação de busca ao néctar da vida, como fazem os bichos em relação às flores. O que não quer dizer que essa busca seja sempre bem-sucedida. Já vi muitos insetos serem devorados por aranhas que, ardilosamente, se escondem entre as pétalas das flores para dar o seu bote certeiro. Isso é uma metáfora sinistra. O inesperado, afinal, tem esquinas mais diversas, com pedras de todos os tamanhos. A pedra maior, no entanto, é a inércia, a prostração existencial, que faz com que deixemos a vida esvair sem que suguemos o seu tutano.
Sobre a busca da felicidade, esta só cai do céu para os pastores astutos em tosquiar a algibeira dos fiéis ingênuos, que não conseguem ver o diabo na fala embusteira que lhes persuade a abrir a carteira sem receber nadica de nada em troca. Isso, na verdade, é uma prolongação das famosas vendas de indulgência, que o monge alemão Martinho Lutero denunciou numa carta de 1517. Carta esta na qual estavam anexadas as suas célebres 95 teses, cujo teor questionava e criticava a extensão do poder do papa. Agora piorou, pois há, de acordo com dados do Censo 2022, 580 mil igrejas de diferentes tipos de religião no Brasil. Uma quantidade que supera o número de hospitais e de escolas (ambos somados). Cabe, portanto, perguntar: Deus está onde mesmo nessa barafunda de religiões?
Deixando de lado o pertinente lado do escárnio, a chuva também é felicidade que cai do céu. Ela enche os rios, aplaca a sede das plantas, engravida as sementes que dormem sob a pele da terra. Dessa gravidez vem o alimento para todos os bichos. E assim a vida vegetal e animal vai se perpetuando, e o mundo, de modo trôpego, vai caminhando numa insanidade assustadora e letal, com homens querendo fazer ninhos nas estrelas, visto que já apodreceram a Terra, assassinaram rios, bichos, pessoas com suas guerras estúpidas movidas por uma avareza sem tamanho.
Para nós, altaneiro leitor, que não somos pastores astutos nem religião temos (mas apenas espiritualidade), só nos resta pegar a estrada e correr os riscos constantes que são inerentes à vida: bater em portas fechadas, falar a ouvidos surdos, acenar a olhos cegos, oferecer flores a robôs, semear sementes entre pedras e espinhos… Isso, no entanto, é necessário, pois o nosso burilamento interior não acontece sem enfrentamento de reveses. As pedras se burilam esfregando-se uma na outra ao serem arrastadas pelas águas dos rios, os quais, sem as pedras, seriam mudos.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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