Batendo pernas pelas ruas de Diamantina, cidade mineira em que nasceu o presidente do Brasil Juscelino Kubitscheck, encontrei uma cachorra muito folgada. Digo “muito” porque ela estava um sono profundo sobre um tapete na porta de uma igreja. Isso dentro do prédio. Vi a cena, atravessei a rua. Fui conferir bem perto. Lógico que registrei o flagrante. Em seu sono, ela falava mais com Deus do que muitas pessoas que rezavam ajoelhadas dentro da igreja. Local onde menos se pode estabelecer uma conversa profunda com Deus.

Na mesma sequência, encontrei mais adiante outra cadela também dormindo, só que na porta de uma loja de artesanato, mas deitada comportadamente. Seu nome é Madalena. Foi a vendedora da loja que me falou seu nome. Ela me contou que Madalena não vive na rua, apenas fica um período e que volta para sua casa à tarde. Essas cadelas me levaram a esta crônica. Na verdade, além delas, há um cão de Goiânia, que estava com seu dono e sendo carregado num carrinho, e uma cadelinha cansada, sem a vida boa dos outros cães desta história. Ia me esquecendo de Baleia, a cachorra do livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.

Madalena fica um período na rua e à tarde volta à sua casa | Foto: Sinésio Dioliveira

Sidney é o nome do homem do carrinho, não confirmei se era grafado com y no final. Fato desnecessário. Já o tinha visto com seu carrinho de catar material reciclável passando na rua da minha casa. Seu carrinho é todo conservado, pintado de amarelo, com tela em volta dele; inclusive há um suporte improvisado especificamente para carregar seu cachorro. Na segunda vez em que o vi, como eu não estava de carro, me foi possível saber não só o seu nome como também o do seu cachorro: Piricotico.

Foi-nos possível uma conversa rápida. Achei que Sidnei estava zoando comigo ao dizer que seu pet tinha tal nome. Eu então, sem que o cão estivesse me olhando, mas para o dono, que falava com o animal e rindo para ele, disse duas vezes “Piricotico”. Verdade: o animal se virou rapidamente para mim. Tinha um olhar dócil e balançava o rabo lenta e irregularmente, certamente curioso com o estranho que pronunciava seu nome. E talvez até pensando: “Qual é a desse cara?”.

Ao contrário de muitos donos de cães que passam na porta do meu prédio, Sidnei me contou que recolhe as fezes do seu cão do chão e na primeira lixeira que encontra deixa nela o saquinho com a titica. O exemplo de Sidnei, um homem simples que batalha por seu pedaço de pão com muito sacrifício, deveria ser seguido por aqueles que não cuidam seus pets de modo completo.

Certa vez, nas proximidades do antigo Jóquei Clube, vi uma cachorrinha numa situação muito desconfortável: seu dono era também um catador de material reciclável, no entanto não carregava o animal. Ela simplesmente acompanhava o homem, que seguia com o seu carrinho indiferente ao animal. A cadelinha estava exausta. Sua aparência física me transportou à Baleia do filme “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, que com mestria fez adaptação do romance homônimo de Graciliano Ramos.

Sidnei, catador de material reciclável, e seu cachorrinho Piricotico | Foto: Sinésio Dioliveira

O que o diretor disse certa vez numa entrevista sobre a obrigatoriedade de a adaptação cinematográfica “provocar no espectador as mesmas emoções que o leitor tem ao ler” é algo que acontece na sua película.  A morte de Baleia, por exemplo, é cheia de emoção.  Ela dormiu para sempre com tiro dado por Fabiano visando sacrificá-la, visto que estava muito doente. Enfim o estrondo da arma levou-a a acreditar que “acordaria feliz num mundo cheio de preás, gordos, enormes”.

Sinésio Dioliveira é jornalista