Ando com o cérebro batendo biela. Ou seja, ando me esquecendo de algumas coisas. Tenho dito a alguns amigos que só vou mesmo ficar preocupadíssimo com isso quando não me lembrar do meu nome, quando ver florada de ipê, cega-machado, jacarandá-mimoso, cássia-javânica e outras árvores e plantas e não me recordar do nome delas. Outra preocupação séria minha com o esquecimento será quando eu não conseguir ver mais as borboletas como pequenos poemas alados voando de flor em flor, será quando eu não souber mais distinguir um chupim de um pássaro-preto tanto na plumagem como no canto.

O pássaro-preto, em “Iracema” – romance romântico José de Alencar –, é chamado de graúna. Alencar, seguindo a cartilha do romantismo, que libera geral a embriaguez subjetiva, não poupou adjetivos melífluos à índia Iracema: “a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira”. Conforme o livro, ela era “mais rápida que a ema selvagem” e seu hálito punha o perfume da baunilha no bolso. A beleza estonteante da índia embriagou o coração e a pele do europeu Martim Soares Moreno, que, mesmo tendo noiva branca, se deitou com Iracema na relva do paraíso e com ela teve um filho: Moacir. Iracema deu ao amado um chá alucinógeno. Babado doido. Martim realmente existiu, porém não como o mostrado no livro. Era português, cuja vida militar iniciou como ajudante de bandeira.

Há certos esquecimentos que são úteis, não os que ando tendo. Mas por favor, altaneiro leitor, não faça uma leitura alarmada de meu relato. Ainda estou me lembrando do meu nome. A pena galhofa, às vezes, me faz colocar mais tinta além da quantidade exata que há nos fatos. Quem escrevinha faz isso. Não à toa que Fernando Pessoa disse que “o poeta é fingidor”. Só de você estar lendo esta crônica (insossa como chupar laranja após escovar os dentes) é uma prova explícita de que minhas faculdades mentais ainda não foram comidas pela ferrugem do tempo, esse bicho voraz, que engole séculos e homens.

Sobre os esquecimentos necessários, muitas vezes relacionados a episódios que desencadeiam dissabores, Machado de Assis de Assis, no conto “Verba Testamentária”, fala disso: “Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o escrito”. Ouvi de alguém que disse conhecer um homem que há uns 15 anos vem sofrendo com dor de consciência, pois não consegue se esquecer de sua ingratidão para com sua mãe, que acabou morrendo sem contar com o amor de seu único filho. É o açoite dolorido do remorso vindo da dor que causamos ontem a alguém e que dói hoje na gente. Os amores têm como esquecê-los, colocando outro no lugar do que acabou. Já com mãe, isso é impossível.

Machado de Assis, o mais importante romancista brasileiro
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Tenho alguns “amigos” que se lembraram de mim após um longo tempo de silêncio. Na frase inicial de suas mensagens enviadas por WhatsApp, um aceno superficial de amizade, e resto externando o objetivo principal do contato: pedir o meu voto. Nas mensagens, vêm a imagem do(a) candidato(a) e algumas observações sobre as virtudes (inumeráveis) da pessoa para a qual pedem voto. Um desses “amigos” até se esqueceu dos R$ 500 reais que lhe emprestei algum tempo atrás. Na época, alegou que seu cartão crédito fora clonado. “Foi bom o seu alô, pois me lembrei da grana que te emprestei. Infelizmente não vou poder votar no seu candidato, pois já tenho o meu”, respondi-lhe. Não acredito que vá me pagar.

Minha vizinha de prédio se lembrou que eu também moro no prédio. Me encontrou no elevador neste final de semana e se dirigiu a mim de modo que estranhei. Ela, que era sempre indiferente, de repente, não mais que de repente, ficou atenciosa, educada. Até me cumprimentou. “Aí tem”, pensei. E tinha mesmo. No caminho para a garagem, me disse que a pastora da sua igreja é candidata a vereadora. Falou coisas e mais coisas virtuosas sobre a pastora. Ouvi-a atentamente, na verdade fingindo-me envolvido com sua conversa artificial. Ao passar perto do meu carro, mostrei-lhe o adesivo do meu candidato no vidro traseiro.

Certamente agora a sua indiferença vai voltar. O que não irá tirar meu sono nem diminuir o meu apetite.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza