A mulher que só comprou flores por causa do Natal
26 dezembro 2023 às 18h55
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O poeta Álvares de Azevedo, cujo tempo de vida não passou de 20 anos (estava a quatro meses para completar 21), num de seus poemas, pediu que, em sua morte, não se derramasse nenhuma lágrima. E mais: “E nem desfolhem na matéria impura / A flor que adormece ao vento…”.
Conheci um maçom na década de 80 que tinha o mesmo desejo que o poeta em relação às flores. Nos tornamos amigos. Ele já no território septuagenário, e eu na casa dos 20 e poucos e em início do curso de Letras na antiga Universidade Católica de Goiás. Esse maçom viveu 72 anos a mais que Álvares de Azevedo (12/8/1831- 25/4/1852), que era poeta da segunda geração romântica, denominada também como “mal do século” (termo surgido na França) por causa da poesia voltada a acontecimentos tristes, amores não correspondidos, mortes e outros afins.
Esse maçom era um homem muito culto. Um dos livros mais impactantes que ele me emprestou foi “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Putz! Nunca uma obra me fez recorrer tanto ao dicionário. Anotei as palavras desconhecidas numa caderneta com seus respectivos significados. De vez em quando, eu passava os olhos na caderneta para incorporar as palavras novas à minha bagagem vocabular. Em seu escritório, lembro-me bem, havia atrás de sua cadeira um quadro com um desenho de um bode bem chifrudo sentado numa cadeira cheia de detalhes em baixo relevo. O primeiro conto que escrevi — “O homem toco” — veio de um relato dele sobre uma prima sua que morria de medo até da própria sombra. Sua prima deu vida à personagem Eulália.
Voltando às flores. “Quero minha casa com flores para esperar o Natal”. Esta frase veio de uma mulher que estava na mesma floricultura em que eu, havia um menino de 6 anos com ela tomando uma latinha de Coca-Cola. Era seu neto, pois a chamou de “vó”. Todo feliz, ele segurava a latinha vermelha igual à cor da roupa do velho Noel, cor que o refrigerante lhe deu na década 30, pegando, certamente, um carona no desenho que o cartunista alemão Thomas Nast (1840-1902) fez inspirado no bondoso bispo Nicolau de Mira, nascido na Turquia em 280 d.C., que tinha o hábito de deixar, durante a noite, moedas perto das chaminés das casas das pessoas menos favorecidas. A lenda do bispo tem outras versões. O certo mesmo é que ele foi canonizado em 1446 pelo papa Eugênio IV. Nast foi com sua mãe para Nova York quando tinha 6 anos de idade. A Coca, enfim, saiu vitoriosa no seu marketing manipulativo, pois conseguiu colar a marca natalina ao refri, que até já criou a Caravana Coca-Cola, em que um caminhão, todo enfeitado a caráter, leva o velho Noel para passear nos grandes centros urbanos do país e dar tchauzinhos às pessoas, sobretudo às crianças.
Senti um cheiro de naftalina na alegria da mulher ao comprar flor só por ser Natal. Igual a ela há muitos que têm guardado no baú no fundo de sua alma esse tipo de alegria superficial para ser exibida em datas especiais. Ela puxou conversa: “O senhor também gosta de flores para enfeitar a casa no Natal?”. A mentira cabia melhor ao momento, e respondi que “sim”. Eu poderia ter-lhe falado que convivo com flores em minha casa o ano inteiro, e até dizer que minhas rosas-do-deserto e minha lanterninha-chinesa estão em flor. Ela comprou um buquê de crisântemos e margaridas. A vendedora, que usava um gorro vermelho igual ao do velho Noel, ainda conseguiu vender um jarro de vidro à mulher para colocar as flores.
Fui ao estabelecimento comprar uma muda bem pequena de pata-de-elefante para colocar no meu banheiro. A planta já está lá, tendo como companhia dois cactos e dois comigo-ninguém-pode. Perguntado certa vez por uma amiga sobre o porquê das plantas no banheiro, respondi-lhe que era minha preocupação com a hipótese de haver falta de papel higiênico, como ocorreu na Venezuela em 2013. Ela foi rápida no gatilho: “Então você precisa ter em seu banheiro é um pé de mamona”.
Voltando ao Natal, o poema abaixo (de nossa lavra) tem a ver com a data e foi publicado em 26 de dezembro de 2011, num suplemento literário da Academia Goiana de Letras, no qual havia também poemas de outros bardos goianos:
Na tal era
muitos vão ao baú empoeirado
no fundo de sua alma
e se vestem duma alegria
cheirando a naftalina
imposta pelo calendário.
Alguns na euforia alcoólica da festa
saem por aí dando “feliz natal”
até a cães de rua e postes
depois se emudecem humanamente
o ano inteiro.
No Dia de Finados
também vão ao baú
se vestem duma tristeza mofada
e no resto do ano
se esquecem de seus mortos.
São poucos
os que não permitem
os calendários manipularem suas emoções
que não riem e choram
porque muitos estão rindo ou chorando.
Sinésio Dioliveira é jornalista