A chuva é sêmen bendito que escorre do céu
05 novembro 2024 às 17h03
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Escutar chuva para mim é dopamina de alto teor. É a chuva que faz a poesia das flores eclodir na chegada na primavera. O ato vê-la caindo, acompanhada de seu som característico caindo nos telhados e árvores, deixa meu cérebro molhadinho de tanta sensação de prazer e bem-estar. Quando estou em casa, assisti-la da minha janela é mais emocionante do que ler um belo poema. A alegria da amendoeira e do cega-machado na porta do meu prédio com a chegada da chuva também me contagia. Aí as duas árvores dançam sublimemente com o vento que vem com a chuva. O cega-machado não dança tanto, pois ainda é muito novinho. Felizmente vai poder crescer à vontade, pois não está sob rede elétrica. Muitas árvores de Goiânia vêm sofrendo com podas impróprias pelo fato de serem espécies de grande porte plantadas em calçadas estreitas e/ou sob rede elétrica.
A amendoeira é enorme. Sobreviveu a uma poda drástica realizada pela Comurg. Poda esta solicitada pela síndica do meu prédio, que pediu apenas a retirada da ponta da copa. Quando cheguei em casa à tarde, no retorno do trabalho, e vi lambança, fiquei enfurecido. Pobre coitada. Sofreu, pois, afinal, é um ser vivente, coisa que os cegos botânicos desconhecem. Cerca de 80% de sua copa foi retirada. Faltou conhecimento técnico na ação dos servidores municipais.
A equipe que a fez não sabia (e certamente ainda não sabe) que as folhas são responsáveis pela fotossíntese, da qual vem a seiva elaborada: um líquido vital, que é conduzido a toda a planta. E essa função das folhas só é possível graças a outro líquido precioso: a seiva bruta – água e sais minerais –, que é absorvida pelas raízes e transportada também por todo o corpo da planta. Esses dois tipos de seiva são conduzidos por dois vasos condutores: o xilema e o floema (este responsável pela seiva elaborada, aquele pela bruta).
O poeta Fernando Pessoa falou pela boca de seu heterônimo Alberto Caeiro, sobre a importância maior da luz do sol em relação aos “pensamentos de todos os filósofos e de todos os poetas”. “Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas”, tomo a liberdade de incluir a chuva nesse escalão de importância. Afinal, ela é indispensável à vida. É sêmen bendito que escorre do céu, que penetra os orifícios da terra, engravida as sementes que dormem sob a pele do solo e assim geram alimentos. Disso vem o nosso pão de cada dia.
A estiagem deste ano foi de amargar. Fez até o capeta chupar picolé de tanto calor. Meu consumo de energia triplicou com o uso de ar-condicionado e climatizador. As plantas estavam desesperadas por água. Vi a aflição de um monte de abelhas arapuás em volta de uma torneira dentro do Bosque dos Buritis. Tive a sensação de ouvi-las gritando “estamos com sede”. Havia também alguns marimbondos. Se pudessem, teriam entrado no cano. O que fiz em favor delas foi praticamente nada perto do problema por que passavam: abri a torneira por alguns segundos para que água caísse e ficasse nas frestas da calçada onde estava a torneira e assim elas consumissem.
Felizmente a chuva chegou. E sua chegada é vida; tanto é que há espaçonaves fuçando o universo à procura de água para possível mudança do homem para outro planeta quando ele já tiver destruído a Terra com sua ganância suicida. É a chuva que gera a eclosão de poesia no colorido das flores, que se transformam em frutos por meio do trabalho de polinização dos insetos (principalmente as abelhas: os animais mais importantes do planeta), e assim saciamos a nossa fome.
Há quem diga que a primavera é o sorriso das plantas. As flores são muito abordadas pelos artistas, sobretudo pelos poetas, que, muitas vezes, fazem delas uma metáfora para expressar a beleza de modo geral. Você, altaneiro leitor, certamente já ouviu por aí uma frase brega até não ter mais jeito: de que “Não se bate em mulher nem com uma flor”. A flor é uma metáfora já bem puída, faz-se necessário dizer, mas o que não significa que seja uma figura de linguagem obsoleta. Tudo está no modo de falar, que resulta do modo de reparar as coisas. Inclusive tomo a liberdade de aqui citar dois versos de Khalil Gibran para fechar esta crônica: “A neve e as tempestades matam as flores, / mas nada podem contra as sementes”.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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